Entre o ruído e o silêncio: entrevista com a poetisa Katarina Lavmel


Num mundo onde o ruído – externo e interno – parece não cessar, há lugares onde o silêncio ganha voz. Katarina Lavmel, poetisa e observadora da paisagem humana e natural, encontrou nos Açores não só um refúgio longe do som constante e da pressa, mas também uma nova frequência para a sua escrita.

Depois de viver entre ilhas, marés e vulcões, publicou um livro que é mais do que um conjunto de poemas: é uma travessia sensível por um território onde o tempo abranda e a escuta se torna mais profunda. Nesta entrevista, fala-nos do que a levou ao arquipélago, da sua experiência como parte de uma pequena comunidade e da forma como o Atlântico transformou o seu olhar.

A seguir, poderá ler alguns dos seus poemas do Ciclo Açoriano intitulado As sete lombas e os quatro cantos do mundo [pl. Siedem lombów i cztery strony świata], e uma recensão crítica da obra, escrita pelo poeta Fernando Augusto Cunha de Sá.


Justyna Żmijewska: O que a levou aos Açores? Foi uma decisão impulsiva ou fruto de uma busca mais profunda?

Katarina Lavmel: Fui levada aos Açores pelos relatos de amigos que vivem em Portugal e pelo encanto com que falavam da natureza deste lugar, da sua rudeza, mas também de uma certa exótica exuberância, de uma intensidade de verde que nunca tinha visto antes.

Justyna Żmijewska: Como surgiu a ideia de escrever um livro de poesia inspirado neste arquipélago?

Katarina Lavmel: Vivendo na ilha, após mais de um ano, comecei a escrever poemas inspirados na vida nos Açores, no quotidiano, sobretudo nas observações sobre a comunidade, a cultura, a natureza e a poderosa energia do oceano. Dois anos desta convivência trouxeram-me não só conhecimento, reflexões e conclusões, mas marcaram profundamente a minha alma e a minha memória com imagens, sons e aromas. Foi um verdadeiro banquete para os sentidos. Mas também emergiram algumas conclusões: nem todos estão preparados para viver ali. Viver no sentido de passar lá todas as estações. Em ilhas extremas como o Corvo, por exemplo, onde o clima é frequentemente exigente, chuvoso, ventoso, com terrenos vulcânicos agrestes, pequenas comunidades e uma certa sensação de claustrofobia territorial, tudo isso pode não ser compatível com o bem-estar de qualquer pessoa.

Justyna Żmijewska: O que procurou captar nos seus poemas? A paisagem, as emoções, os encontros, ou talvez algo mais subtil?

Katarina Lavmel: No ciclo açoriano, procurei transmitir a atmosfera do lugar, posicionando-me mais como uma narradora. Embora o meu discurso seja poético, muitas pessoas leem-no como se estivesse a contar histórias reais sobre lugares, pessoas e acontecimentos, era esse o meu objectivo. Apenas em alguns poemas expressei emoções, mas este livro, acompanhado pelas fotografias tiradas por Arturro Sobreiro em todas as ilhas, constitui uma espécie de viagem mental por lugares não turísticos do Arquipélago dos Açores.

Justyna Żmijewska: Que impacto tiveram os Açores na sua escrita? O que despertaram ou transformaram em si enquanto poetisa?

Katarina Lavmel: Siedem lombów i cztery strony świata – ciclo açoriano é o meu quarto livro de poesia. Participei também em três antologias internacionais, mas é com esta última, esta viagem poética açoriana, que mantenho uma ligação emocional mais profunda. Estou grata por ter podido viver ali, conhecer o carácter do lugar, as suas dificuldades e celebrações, não como turista, mas como membro de uma pequena comunidade, no extremo da ilha de São Miguel. Conheci também todas as outras ilhas dos Açores e desenvolvi uma visão própria sobre muitas questões. Vejo a diversidade do arquipélago e a individualidade de cada ilha.

Justyna Żmijewska: A sua poesia tem algo de polaco e algo de açoriano? Como se manifestam essas duas influências?

Katarina Lavmel: Neste ciclo açoriano, há momentos em que mostro o que está “lá” e o que está “aqui”, por meio de comparações, mas também de valorações. Nunca encontramos as mesmas pessoas, os mesmos lugares. E, embora por vezes sintamos saudades de algo distante, é apenas através da abertura ao novo, ao conhecer e ao experimentar, que ganhamos verdadeiras perspectivas de crescimento. Essa sensação pode ser surpreendente – por vezes amarga, outras vezes doce – mas valorizo profundamente essa possibilidade de escolha. É isso que procuro, e é disso que falo na minha poesia, dessas escolhas, dessas observações, às vezes de forma direta, outras de forma mais subtil.

Justyna Żmijewska: Podemos ver a sua escrita como uma tentativa de cruzamento de culturas – uma ponte poética entre a Polónia e os Açores?

Katarina Lavmel: Não reduziria a minha escrita a uma simples fusão entre a cultura polaca e a açoriana. A cultura açoriana está profundamente enraizada no local e, por vezes, fortemente ligada ao folclore e às lendas. Diria antes que a minha escrita estabelece uma ligação poética entre o espaço polaco, a espiritualidade eslava, e os Açores, Portugal insular, com a sua identidade e especificidade, mas também com a sua alma profundamente portuguesa e atlântica.

Justyna Żmijewska: Se tivesse de resumir esta viagem poética numa só frase, qual seria a essência dessa experiência?

Katarina Lavmel: “Os Açores – dedico este livro à Natureza.”
E acrescentaria: Esta é a nossa casa, onde quer que vivamos.


As palavras de Katarina Lavmel ecoam como um convite à escuta, daquela que se faz não só com os ouvidos, mas também com a memória, com o corpo e com o olhar estrangeiro que aprende a pertencer.
A seguir, partilhamos alguns poemas do seu Ciclo Açoriano, uma amostra da escrita que nasce entre a solitude da ilha e a vastidão do oceano.


Tradução para português: Teresa Fernandes Swiatkiewicz

Aula de geografia

Nas casas onde morei não havia escadas
aqui passo muito tempo nelas
Ponte mágica pan-atlântica
precisamente o sexto degrau algures a meio
entre Słupsk e as Américas

Além da porta estende-se a imensidão
de falésia em falésia do nascer ao pôr do sol
blue water
em nada me limita
sinto porém já há tempo a claustrofobia da ilha

A cada dia o oceano tem outra tonalidade
qual ser humano que todos os dias muda de humor
acontece (às vezes) com boa visibilidade
a ilha de Santa Maria emergir na linha do horizonte

Bebo chá verde num prado açoriano no jardim
— a melhor aula de geografia da minha vida


Verde – azul

Manjericão e hortelã
meus afrodisíacos açorianos
Alimenta-nos o verde terapêutico dos Açores
o manjericão-anis no pano de fundo do azul da água
E ainda muitas ondas da cor da sopa regional
quem gostar ficará cativo
Só falta um pouco de poesia
o que leio deveria bastar-me
Os poetas do sítio onde agora me acho ainda não estão prontos
para encontros horizontais de culturas

Por isso faço este herbário açoriano para nós
secando flores e ervas

As gotas do orvalho retêm os odores
Não sabia que um instante pudesse
rescender tanto


Quadros pequenos

Relaxadas as vacas açorianas contemplam
são plenas na sua satisfação
Até o seu salivar é ecológico
A vista para o oceano é como a espuma deliciosa
de um bombom recheado
Acomoda-se doce na língua qual erva
só lhe falta baunilha

É genuinamente uma terra verde que mana leite

No final da estação prevê-se para elas uma última atração —
uma excursão panorâmica até ao matadouro
depois este estado de afirmação do mundo será congelado

para chegar às lojas e aos supermercados


Perspetiva

De verde se vestiram nove seres independentes
nove ilhas entre elas o Atlântico emaranhadas em ondas
de lendas e desejos
de uma vida melhor na América

Em vales de vulcões extintos aninharam-se lagoas
aldeias sem cores, casas ligadas por uma parede em comum
com o outro lado a dar para uma rua estreita
os jovens porém não querem respirar o ar em comum

Trepam os braços do polvo — as lombas
casas coladas umas às outras como irmãs siamesas
aquecem as costas no inverno
Todos sabem uns dos outros — quem luta contra o quê
quem comprou algo mais caro
e quem não tem nada

Desta montanha rapidamente se desce para o quotidiano
depois como num reality show é preciso trepar
sempre a subir ser aplaudido pelo destino e dormir bem

A palavra Açores significa açor
uma ave de rapina aninhada no meio do Atlântico…
Observam sem cessar

Entre os terraços dos prados
as riscas cinzentas
da insegurança de um coelho


Lomba

Na lomba uma velhota à janela hoje viu três pessoas
voltavam para casa, subindo em ziguezague
poupando assim os joelhos à artroscopia
geralmente aceitam caminhos cheios de colinas e curvas
um percurso como um slalom alpino — assim se diz em muitos países
nunca estiveram nos Alpes
raramente no continente
acompanha-os um pensamento simples:
é o caminho para casa

A neblina volteava lentamente pisando os calcanhares
com frieza e indiferença


A escrita de Katarina Lavmel, nascida da experiência insular e marcada por uma escuta sensível do lugar, merece um olhar atento e informado. O poeta Fernando Augusto Cunha de Sá aproxima-se da obra com rigor e empatia, revelando as camadas subtis que atravessam este Ciclo Açoriano e situando-o no diálogo entre geografias, línguas e sensibilidades poéticas.


… Nesta canção de Georges Moustaki, “Il y avait un jardin” /Havia um jardim, coloca-se uma pergunta essencial:


Havia um jardim que se chamava terra.
Tão grande que milhares de crianças podiam habitá-lo.
E que os nossos avós tinham habitado na sua época
Após dos seus avós o terem eles herdado.

Onde está esse jardim onde poderíamos nascer?
Onde poderíamos viver despreocupados e nus?

Esse jardim, afinal, está na Terra desde a sua criação. É o jardim do Eden referido no Genesis, onde Deus pôs o homem após o ter criado e de onde o expulsou depois, nele deixando o sentimento de perda permanente e irremediável e a necessidade vital de reencontrar esse paraíso perdido.

Assim, o homem tornou-se viajante em busca do paraíso perdido.

Para essa viagem já o livro de JOB, 12, 7-9 mostrava o caminho:

pergunta aos animais e eles ensinar-te-ão, às aves do céu e elas te hão de instruir, conversa com a terra e ela te responderá e com os peixes do mar e eles te darão lições

“AS SETE LOMBAS e os quatro cantos do mundo (ciclo açoriano)” são os poemas da viagem que a KATARINA LAVMEL fez da Polónia, seu país natal, para o arquipélago dos Açores, no meio do Oceano Atlântico. Também ela viajante de uma viagem física que é ao mesmo tempo uma viagem espiritual.

Este seu último livro de poemas, “AS SETE LOMBAS e os quatro cantos do mundo”, é uma edição bilingue, com a tradução do polaco para português feita pela Prof. Teresa Fernandes Swiatkiewicz .
O livro é dedicado pela Katarina Lavmel “à Natureza que é a nossa casa, onde quer que vivamos”.

E é ilustrado com excelentes fotografias de ARTURRO SOBREIRO, fotógrafo também polaco que se tem dedicado a captar as paisagens dos Açores.

Um belo livro, a todos os títulos, nomeadamente como objecto, o que merece ser salientado na presente época de livros virtuais.

A partir da ilha de S. Miguel, onde a Katarina acabou por viver durante 4 anos, ela percorreu cada uma das demais ilhas do arquipélago dos Açores . Nessa vivência as paisagens e as gentes açorianas tornaram-se a raiz e o centro da sua inspiração poética.

A viagem geográfica de Katarina Lavmel foi feita pela paisagem açoreana, tanto territorial como humana novas paisagens – das coisas e das gentes – distintas do mundo até então por si habitado e conhecido novas experiências de vida, que lhe permitiram o encontro poético com uma diferente percepção da sua própria existência.

Este novo território físico,com as suas lombas, os céus e o mar , as suas gentes e animais, suscitou novo território espiritual, em termos poéticos.

A visão quotidiana do mundo que a passou a envolver projecta-se no estado de espírito da poetisa. Por vezes, é a descoberta de diferenças, outras vezes é a reflexão crítica sobre o ambiente humano observado.

Por exemplo, no poema “Verde – azul” (p. 13) :

As gotas do orvalho retêm os odores.
Não sabia que um instante pudesse
rescender tanto

E no poema “Quadros pequenos” (p.25):

é genuinamente uma terra verde que mana leite

poema que, aliás, termina com a amarga ironia sobre a “excursão panorâmica até ao matadouro” das vacas açorianas no final da estação.

Mas os seus versos não prescindem de retratar também o ambiente humano.

Assim no poema “Verde – azul” (p. 13) :

Os poetas do sítio onde agora me acho ainda não estão prontos
para encontros horizontais de culturas

Ou no poema “Riachos” (p.49):

as histórias ouvidas no bar dão lições da vida
de aqui

Verificamos que a poesia de viagem da Katarina Lavmel oscila ora entre a paisagem geográfica, ora entre a projecção do entorno físico em estados de alma.

Veja-se o poema sem título da p.53

As noites de inverno nos Açores são como uivos de lobos
num vale sombrio

Ou o poema “Humidade” (p.57):

Quando chove continuamente tens tempo e podes escolher
fazer amizade com os teus pensamentos
ou mergulhar na caverna da sonolência

Subjugada pela beleza e a força das paisagens açorianas, Katarina Lavmel convida-nos nos seus poemas a fazer a descoberta da natureza como verdadeiro país da poesia.

Neste convite à viagem pela natureza, também proclamado por GOETHE, cabe, como dissemos, tanto a viagem meramente geográfica ou física, como a viagem espiritual a que aquela dá origem.
Podemos assim falar de poemas de permanência nos novos territórios alcançados pela deslocação física e de poemas de peregrinação.
Os versos das SETE LOMBAS parecem-me dever ser enquadrados mais como versos de permanência do que como versos de peregrinação.

Permitam-me aflorar rapidamente, em contraponto à poesia de permanência, a poesia de peregrinação ou da errância física e espiritual.
Esta tem como um dos seus maiores expoentes MATSUO BASHÔ, poeta japonês do séc. XVII (1644 – 1694), cuja obra “O Eremita Viajante”, foi editada entre nós pela Assírio & Alvim.

Bashô fala “com breves palavras (mas de braço dado com o silêncio) do intemporal que há no temporal e de viagens várias não necessariamente geográficas”.
Os seus haikus descrevem com grande simplicidade o mundo que rodeia o poeta.
É isto o haiku no ensinamento de Bashô:
”simplesmente o que sucede num lugar e num momento dado”.

Por exemplo:

Um velho poço
uma rã que salta:
o som da água

A errância em Bashô apresenta-se como busca da verdade através do contacto directo com o mundo e os aspectos efémeros da existência, uma forma de vivência espiritual, em que o movimento físico se liga à natureza mutável e transitória da vida humana, em que a viagem é metáfora da jornada espiritual.

Idêntica metáfora pode ser descoberta no poema de Katarina Lavmel “Aqui e ali” (p.17), quando se interroga e nos interroga:

O que é a ternura
Não só humana : a das corças
amplexo de árvores
roçar de ervas
toque de chuva
calor de pedra
Perguntar sobre a alma ou sua falta é escusado

que assim continue
despretensiosamente

As cores, as tonalidades, os ambientes dos Açores estão presentes permanentemente nos poemas de viagem da Katarina.

Cito:

Bebo chá verde num prado açoriano no jardim
a melhor aula de geografia da minha vida ( p.9)

Manjericão e hortelã
meus afrodisíacos açorianos (p.13)

ainda há lugares envoltos em neblinas, enigmáticos
inacessíveis à obsessão cibernética onde te podes desnudar (p.21)

em vales de vulcões extintos aninharam-se lagoas
aldeias sem cores, casas ligadas por uma parede comum (p.29)

a doçura do sumo nos meus dedos e o céu sobre mim
o oceano ao nível dos meus olhos (p.73)

O prazer da leitura destes poemas persegue, sem dúvida, o prazer da contemplação da natureza que neles se retrata.

AS SETE LOMBAS constituem seguramente a projecção dos Açores no universo poético da Polónia.

                                Fernando A. Cunha de  Sá

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Doutoranda em literatura portuguesa na Universidade de Varsóvia, com investigação centrada na literatura dos Açores. Apaixonada por línguas estrangeiras e pelo encontro com novas culturas. Admiradora do mundo romano antigo e entusiasta das línguas minoritárias. Poeta autoproclamada desde os tempos do liceu e orgulhosa mãe de duas gatas: Mrusia e Mania.

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