Esta história foi criada como um projeto final para as aulas de Literatura Portuguesa Contemporânea. Inspirada pelo conto de Florbela Espanca A Morta (da coletânea As Máscaras do Destino, publicado pela primera vez em 1931) decidi responder à pergunta que a Morta fez a si mesma – o que aconteceu com o noivo? Como gosto de considerar muitas possibilidades interpretativas e tento olhar para as pessoas, os acontecimentos e a vida de diferentes perspetivas, tentei interpretar o outro lado da história. Porque, como sabemos, nunca há um só lado e nunca há uma só razão nas relações humanas.

«O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não o podem entender os vivos
nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que ao lado dormiam pesadamente,
braços pendidos num gesto de fadiga pelos séculos dos séculos. […]
Mas, uma tarde, a Morta esperou em vão, e esperou outra e outra e outra ainda
em infindáveis horas de infindáveis tardes.»

Florbela Espanca, “A Morta” (As Máscaras do Destino)

Isto aconteceu.

O Vivo ouviu uma badalada, mas não sabia que horas eram, os sons alcançaram-no inconscientemente e ricochetearam na barreira de pensamentos caóticos. Sentado no banco, sem saber o que fazer, ele sentou-se no meio do caminho, caminho que levava de um mundo a outro muito distante. Outros vivos, mais vivos que ele, andavam rapidamente, sem saber para onde iam. Sem adiar o seu destino, o Vivo levantou-se do banco e avançou com um passo ansioso que conhece a tristeza da decisão dolorosa. Começou a ir mais devagar e a olhar para os rostos das pessoas que refletiam emoções não menos indiferentes do que aquelas que o rasgaram. Atravessando um jardim, olhou para os teixos sinistros que o rodeavam como uma armadilha, lembrando-o de que alguém estava à espera das suas gotas de vida. Gotas de vida que ele derramou tão rapidamente que a sua alma e o seu corpo não conseguiram preencher-se novamente. Ele estava longe, longe do mundo dos mortos, que era tão diferente do jardim da vida, cujo cheiro doce e triste sempre o atraíra. O Vivo continuou a andar no mesmo ritmo inquieto, não sabendo realmente aonde ia, mas sentindo que estava a ir na direção certa. Em direção ao seu destino.

O passo forte, animado e determinado do Vivo tornava-se cada vez mais fraco à luz da lua que, se antes testemunhava encontros de noivos, agora lançava com tristeza as sombras da noite. Pensamentos apressados e misturados uns com os outros perturbaram-no, e nenhuma lembrança lhe vinha à mente. O Vivo queria relembrar como e por que tudo isto começara, mas não podia. Os vivos não têm tempo para lembrar, mas ele decidiu parar e olhar para trás. Apreciando o cheiro delicado do miosótis, ele sentou-se entre as ervas.

O Vivo ia a lembrar-se:

Ele não sentiu nada, sentiu um vazio imenso, tocando com dedos quentes as pálpebras frias, sob as quais estava escondido um olhar apagado. Ela ainda era linda, toda de branco com aquele rosto triste, destacando-se dos enlutados em fatos pretos, vestidos pretos, com os rostos cobertos de véus, pessoas infelizes que tiravam chapéus inclinando-se na hora de dizer adeus. O Vivo inclinou-se sobre a caixinha de sete palmos pequeninos, incapaz de derramar lágrimas, e outros vivos soltaram flores das suas mãos. Rosas, cravos e lírios começaram a cobrir o pobre corpo e leve da noiva em que já não se podia encontrar nenhum sopro de alma.

E depois começaram os encontros dessas duas almas já pertencentes a outros mundos. A mão do Vivo empurrava a porta do jazigo. Os outros mortos, com os braços pendentes num gesto de fadiga, não lhe prestavam atenção. E depois havia conversas, um diálogo incompreensível para os outros. As suas almas uniam-se e tocavam-se sem se fartar. Depois o Vivo voltava para casa, uma casa vazia, que lentamente começava a assemelhar-se à sepultura em que a sua noiva vivia agora. Ele sentava-se à mesa perto da janela e escrevia longas cartas de amor, esperando que um dia elas animassem a sua amada.

Um dia, o Vivo, cansado, deixou de escrever cartas loucas e olhou pela janela. E viu os outros vivos a passear, conversar, rir, chorar, mas ainda vivos, em constante movimento para a frente enquanto ele parara, e sua existência deixara de lhe pertencer. O noivo viu namorados abraçados no banco e sentiu uma pontada no seu coração que, a cada um dos abraços da sua noiva, ficava ainda mais frio. Milhares de pensamentos passaram pela sua cabeça, e ele não sabia onde procurar qualquer sentido. Olhava sem pensar pela janela, e quando chegou a hora do encontro, ele saiu devagar, mas não foi para o cemitério. Sentou-se no banco e sentiu o calor dos corpos entrelaçados que viviam, e diante dos quais ainda havia futuro.

 E agora ele levantou-se da erva e caminhou, tendo a certeza do seu destino. O Vivo chegou a um cerro do qual se podia ver a Vida. Ele fez uma fogueira, e as cinzas começaram a cobrir lentamente o seu fato branco e limpo, que se transformava numa roupa de luto. E debruçou-se lentamente sobre o fogo, e o Vivo foi mais uma chama, mais uma faísca e mais uma fumaça em direção à eternidade.

Isto aconteceu.

De manhã, a cidade estava cheia de movimento, como todos os dias, mas um lugar ainda era calmo, onde um caixão foi encontrado vazio, uma caixinha branca de sete palmos pequeninos, onde cartas de amor amareleciam e flores começaram a murchar. E no túmulo vazio sentou-se um pássaro preto, um corvo que subiu ao céu como uma fénix e voou para a eternidade.


* Esta história foi criada como um projeto final para as aulas de Literatura Portuguesa Contemporânea. Inspirada pelo conto de Florbela Espanca “A Morta” (da coletânea As Máscaras do Destino, publicada, pela primera vez, em 1931) decidi responder à pergunta que a Morta fez a si mesma – o que aconteceu com o noivo? Como gosto de considerar muitas possibilidades interpretativas e tento olhar para as pessoas, os acontecimentos e a vida de diferentes perspetivas, tentei interpretar o outro lado da história. Porque, como sabemos, nunca há um só lado e nunca há uma só razão nas relações humanas.

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Começou a estudar no Curso de Estudos Portugueses na Universidade de Varsóvia em 2016. A escrita abre-a para outros mundos e é por isso que gosta de inventar histórias. Além de escrever, adora experimentar coisas novas, mas o que tem um lugar permanente na sua vida é o teatro, as viagens, a comida, os gatos e o ukulele.

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