Cruzada das Mulheres – as portuguesas na Frente da Grande Guerra

A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa,1918), edição semanal do jornal O Século; fotografia da autora
A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa,1918), edição semanal do jornal O Século. Fotografia da autora

Ao longo da história, as mulheres enfrentaram o isolamento e a exclusão em diversas esferas da vida política, social e cultural. As suas vozes foram frequentemente silenciadas, e as suas contribuições relegadas ao esquecimento, perpetuando uma narrativa histórica predominantemente masculina. A participação feminina em eventos históricos, os seus esforços, sacrifícios e realizações foram muitas vezes ignorados ou subestimados, deixando lacunas na compreensão do passado.

Ainda assim, ao longo dos séculos as mulheres desafiaram essas barreiras e reafirmaram a sua relevância. Um exemplo marcante foi a sua atuação durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando, apesar das adversidades, se mobilizaram ativamente para apoiar o esforço de guerra, principalmente por meio de iniciativas como a Cruzada das Mulheres Portuguesas. Estas heroínas silenciosas demonstraram coragem e solidariedade, assumindo papéis essenciais no apoio aos homens que combatiam na linha frente.

Refletir sobre a sua situação, o seu papel e a forma como conduziram esta luta é essencial para reconhecer a sua importância histórica e iluminar aspetos frequentemente ocultos da sua contribuição para a sociedade. Olhemos, então, para o lado feminino da história da Grande Guerra.

A situação das mulheres na era da Grande Guerra

Com a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial, em 1916, a situação das mulheres, tal como no resto da Europa, sofreu mudanças profundas. O conflito teve um impacto significativo na vida social e económica do país, transformando, por conseguinte, o papel e as experiências das mulheres, rompendo com as estruturas sociais que as mantinham confinadas a papéis tradicionais há vários séculos.

Os hábitos femininos foram profundamente alterados, pois as mulheres tiveram de assumir responsabilidades que, até então, eram consideradas exclusivas dos homens. Inicialmente, prevalecia em Portugal, assim como em outros países, um consenso social de que as mulheres deveriam permanecer em casa e cumprir os seus deveres tradicionais. Contudo, o desenrolar do conflito e a crescente procura do apoio ao esforço de guerra transformaram esse cenário.

Com a ausência dos homens, enviados em grande número para os campos de batalha, as mulheres passaram a ocupar os seus lugares por necessidade. Tornaram-se as principais provedoras de sustento, ingressaram no mercado de trabalho, especialmente na indústria militar, e, ao mesmo tempo, mantiveram as tarefas tradicionalmente femininas, conforme os padrões sociais vigentes. Esse período marcou um ponto de inflexão, evidenciando a capacidade feminina de transcender limitações impostas e de desempenhar papéis fundamentais na sociedade.

A imagem foi publicada na revista «Ilustração Portugueza», edição semanal do jornal «O Século»; fotografia da autora
A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa, 25.05.1918), edição semanal do jornal O Século (fotografia da autora).

A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa, 25.05.1918), edição semanal do jornal O Século (fotografia da autora).

Em resposta aos desafios impostos pela guerra, muitas mulheres em Portugal sentiram a necessidade de agir e envolveram-se em diversas iniciativas de caridade e filantropia, que tiveram um impacto significativo na sociedade, tanto durante o conflito quanto nas suas consequências a longo prazo, especialmente no que diz respeito à luta pela igualdade de género. Em Portugal, formaram organizações como a Cruz Vermelha Portuguesa, o Núcleo Feminino de Assistência Infantil (NFAI), a Assistência dos Portugueses às Vítimas da Guerra e, finalmente, a Cruzada das Mulheres Portuguesas (FRAGA 2010: 504). Todas estas organizações partilhavam um objetivo comum – ajudar os soldados e as suas famílias, apoiar o país e o seu povo durante este período difícil.

As atividades destas organizações incluíam a angariação de fundos, a distribuição de alimentos, vestuário e outros bens essenciais, além do trabalho comunitário voltado para a saúde pública. Com a entrada de Portugal no conflito, surgiu também uma grande procura por profissionais da área da saúde, especialmente nos hospitais militares. Embora estas funções fossem tradicionalmente desempenhadas por homens, a escassez de pessoal provocada pela guerra abriu espaço para que mulheres começassem a assumir estas responsabilidades.

A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa, 18.03.1918), edição semanal do jornal O Século; fotografia da autora
A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa, 18.03.1918), edição semanal do jornal O Século; fotografia da autora

A imagem foi publicada na revista Ilustração Portugueza (Lisboa, 18.03.1918), edição semanal do jornal O Século (fotografia da autora).

Outro aspeto relevante foi a dimensão psicológica do cuidado. Destacou-se o papel das mulheres em proporcionar conforto emocional e apoio em momentos difíceis, o que foi importante para a recuperação dos feridos. Para atender a esta procura crescente, começaram a ser criadas escolas de enfermagem, que organizaram cursos de formação em medicina para jovens mulheres. Muitas dessas profissionais prestaram assistência não apenas em hospitais nacionais, mas também em missões no estrangeiro. Este facto deu origem à aceitação da presença de mulheres no exército (FRAGA 2010: 505).

Em Julho de 1918 doze enfermeiras da CVP desligaram-se do serviço daquela instituição e solicitaram ao comando do CEP a passagem à dependência directa da estrutura militar. Foi assim que, pela primeira vez na história do Exército português, se incorporam mulheres nas fileiras, tendo-se formado o 1. Grupo Auxiliar de Damas Enfermeiras (FRAGA 2010: 506).

Apesar das mudanças significativas e dos progressos alcançados na luta pela igualdade, bem como das inúmeras provas de competência e inteligência demonstradas pelas mulheres, persistiam restrições e estereótipos que limitavam os seus papéis na sociedade. As mulheres continuavam a ser vistas como principais responsáveis pela esfera doméstica e pelos cuidados da família. Mesmo com o seu envolvimento ativo e as suas contribuições durante a guerra, os seus esforços não foram devidamente reconhecidos.

Após o fim da guerra, embora algumas mulheres tenham continuado a envolver-se em atividades sociais e políticas em prol da igualdade de direitos e de uma maior justiça de género na sociedade portuguesa, muitas foram forçadas a retornar aos papéis tradicionais. As suas iniciativas frequentemente caíram no esquecimento ou foram marginalizadas, sendo apagadas da memória coletiva. No entanto, esta transformação do papel das mulheres durante a guerra marcou um avanço significativo. Elas não apenas contribuíram de forma prática para o esforço de guerra, mas também demonstraram a sua capacidade de assumir novas funções em tempos de crise, desafiando preconceitos e abrindo caminho para mudanças sociais duradouras.  Para entender esses acontecimentos marcantes, vamos explorar detalhadamente a ampla gama das suas atividades, tomando como exemplo a organização Cruzada das Mulheres.

A Comissão Feminina «Pela Pátria» e a Cruzada das Mulheres Portuguesas

Perante a guerra, em Portugal, surgiu uma importante associação de beneficência, exclusivamente feminina, conhecida como «Pela Pátria». Fundada em 1914 pela iniciativa de Ana Castilho, Ana de Castro Osório, Antónia Bermudes e Maria Benedita Mouzinho de Albuquerque Pinto, a organização tinha como objetivo principal unir as mulheres portuguesas em prol do esforço de guerra e promover a solidariedade patriótica. O nome «Pela Pátria» reflete a essência e o propósito da organização, evidenciando o compromisso das mulheres portuguesas em defender os interesses e o bem-estar da nação durante um período desafiante. Essa comissão nasceu dentro da Associação de Propaganda Feminista e recebeu apoio da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, convertendo-se na base da Cruzada das Mulheres Portuguesas.

A principal motivação para a ação desta associação foi o sentimento de urgência de se prepararem e agirem caso a guerra atingisse diretamente o território português ou obrigasse filhos, pais, maridos e irmãos a partir para os combates. Além disso, as mulheres portuguesas foram profundamente influenciadas pelos apelos de solidariedade das mulheres europeias já envolvidas no conflito. As notícias sobre as «atrocidades» cometidas pelas forças germânicas e os pedidos de apoio às mulheres belgas, francesas, polacas e sérvias eram constantes, alinhando-se à propaganda que demonizava o inimigo (MONTEIRO 2016:114). Através da imprensa feminista, que mantinha intercâmbios regulares com publicações de associações semelhantes em toda a Europa, este diálogo internacional reforçou o sentido de responsabilidade compartilhado pelas mulheres portuguesas.

Em fevereiro de 1915, a Comissão Feminina «Pela Pátria» dirigiu um manifesto à Câmara Municipal de Lisboa, apelando ao apoio para os seus esforços em auxiliar os soldados portugueses e reforçar os valores patrióticos. Nesse documento, as autoras destacaram a importância das mulheres na guerra, inspirando-se, em especial, no exemplo das mulheres francesas:

As mulheres de todos os países, principalmente dos beligerantes e em especial as de França, deram tão altas provas de disciplina, de inteligência e grandeza moral, que após esta tremenda catástrofe a humanidade sentir-se-ia enobrecida pela  colaboração consciente e bela da mulher na luta contra o sofrimento e a destruição. [1]

Estas mulheres foram visionárias, recusando-se a adotar uma postura passiva diante de um conflito global. Para divulgar a sua causa em todo o país, publicaram discursos, manifestos, panfletos e artigos, promovendo mensagens de patriotismo e angariando fundos para sustentar as atividades da comissão. Um dos aspetos mais marcantes e inovadores da associação era o seu caráter inclusivo: atraía mulheres de diferentes classes sociais, permitindo que cada uma contribuísse conforme as suas capacidades e recursos. Essa abertura possibilitou um envolvimento mais amplo, fortalecendo a coesão e a eficiência da organização.

Em 1916, com a entrada de Portugal na guerra e o consequente aumento das necessidades, a organização «Pela Pátria» evoluiu, transformando-se na Cruzada das Mulheres Portuguesas. Essa mudança marcou uma ampliação significativa no escopo de atuação, assumindo um papel mais abrangente na mobilização feminina em prol do esforço de guerra. «Presidida por Elzira Dantas Machado, mulher do presidente Bernardino Machado, contando também com suas filhas e outras familiares de políticos e militares notáveis, a Cruzada aglutinou quase uma centena de mulheres da elite republicana» (ALVES 2016), consolidando-se como uma força notável na sociedade portuguesa da época.

Para responder às necessidades emergentes, a Cruzada estruturou-se em diferentes secções e comités especializados, abordando áreas como assistência social, saúde, educação, propaganda e outros setores. O objetivo principal era não apenas prestar apoio aos soldados e as suas famílias, mas também contribuir para o bem-estar do país como um todo.

A Comissão de Propaganda foi responsável por divulgar os objetivos da organização, promovendo o patriotismo e a ideologia republicana, além de apoiar o projeto intervencionista da União Sagrada. A Secção Médica, por sua vez, desempenhou um papel crucial na organização da assistência médica, gestão de hospitais e formação de enfermeiras, que eram enviadas tanto para a frente de combate na França, quanto para hospitais em território nacional. Esta secção também organizou o Instituto Clínico em Campolide, destinado à convalescença dos feridos de guerra. «As enfermeiras da cruzada exerceram mais tarde nos hospitais de Belém e da Estrela, no Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra em Arroios […] e no Hospital de Recuperáveis de Hendaye nos Pirenéus franceses» (ALVES 2016). As enfermeiras não apenas salvaram vidas, mas também trouxeram alívio emocional aos soldados, como evidenciado em relatos emocionantes dos combatentes. Jaime Cortesão, um soldado português, nas suas memórias, recorda estas corajosas mulheres:

Recordarei sempre com alma agradecida as doces figuras dalgumas dessas Mulheres, que suavizaram tantas das nossas horas amargas de doentes e exilados com a sua piedade e o seu encanto (CORTESÃO 1919: 216).

No entanto, este trabalho intenso exigia esforço físico e mental, resiliência e sangue-frio, pois as mulheres enfrentavam de perto a crueldade e o sofrimento causados pela guerra.

Adicionalmente, além de prestar assistência direta aos soldados, a Cruzada dedicou-se ao apoio às famílias dos combatentes, frequentemente desamparadas devido à ausência dos homens. Paralelamente, a organização investiu em iniciativas de longo prazo, como a criação de escolas profissionais para mulheres, creches e orfanatos (ALVES 2016), visando capacitar as mulheres para o mercado de trabalho e oferecer-lhes meios de sustento para suas famílias, tanto durante quanto após o conflito (LOUSADA 2011: 669). Assim, a Cruzada não respondeu apenas às necessidades imediatas impostas pela guerra, mas também desempenhou um papel transformador na sociedade portuguesa, deixando um legado de liderança e solidariedade feminina em tempos de crise.

Concluindo, a Cruzada das Mulheres Portuguesas era um organismo complexo, atuando em ampla escala tanto a nível interno quanto externo e exercendo uma influência significativa sobre o desenrolar do conflito. Mas será que podemos considerar este empenho uma forma de luta? As mulheres, assim como os homens, vestiram um «uniforme» – ainda que simbólico – e também foram soldadas. Não lutaram com armas nas trincheiras, mas tudo o que realizaram, tanto na frente de guerra quanto na frente doméstica, constituiu uma batalha: uma luta pela vida, pela sobrevivência, pelos direitos, pelo próximo e por si mesmas.

O seu esforço, sem dúvida, merece ser valorizado e a sua voz devidamente reconhecida pela História. A luta das mulheres, portanto, foi travada em múltiplas frentes – com coragem, determinação e um impacto transformador que ressoa até hoje.


[1] Uma cópia digitalizada do documento de onde foi retirada a citação provém do artigo:
Ramos, Graça Andrade (2016). As portuguesas na Frente. RTP Notícias. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/portugal-na-1-grande-guerra/as-portuguesas-na-frente_es948192


Bibliografia

Afonso, Aniceto; Gomes, Carlos de Matos (eds.), Portugal e a Grande Guerra. 1914-1918. Matosinhos: Quid Novi Edições e Conteúdos, 2010.

Alves, Silvia (2016) A Cruzada das Mulheres. RTP Notícias.
https://www.rtp.pt/noticias/portugal-na-1-grande-guerra/a-cruzada-das-mulheres_es953039 [10.06.2023].

Cortesão, Jaime (1919) Memórias da grande guerra: 1916-1919. Porto, Renascença Portuguesa.

Lousada, Isabel (2011) Pela Pátria: A Cruzada das Mulheres Portuguesas (1916­‑1938). XIX colóquio de história militar. IX Sessão, pp. 667-688. A Cruzada das Mulheres Portuguesas.pdf [10.06.2023].

Monteiro, Natividade (2016) «Mulheres Portuguesas em Tempo da Guerra (1914-1918)». Nação e Defesa. nº145, pp. 109-121.
Mulheres portuguesas em tempo da guerra 14-18.pdf [10.06.2023].

Ramos, Graça Andrade (2016) As portuguesas na Frente. RTP Notícias. https://www.rtp.pt/noticias/portugal-na-1-grande-guerra/as-portuguesas-na-frente_es948192 [10.06.2023].

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Guiada por uma paixão pela cultura europeia, membro de uma pequena família internacional de amigos de todos os cantos do mundo, é licenciada e mestranda em Filologia Portuguesa. Atualmente, espera começar o segundo mestrado, desta vez, em História, com especialização em Antropologia Histórica. Estudou na Universidade de Varsóvia e na Universidade de Lisboa. Sempre a viver entre as suas duas terras - Polónia e Portugal.

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