Como sublinha Anna M. Kłobucka:
“o cânone da literatura portuguesa é composto exclusivamente por autores do sexo masculino até aos meados do século XX, abrindo-se eventuais e questionáveis exceções a esta regra para algumas freiras-poetisas barrocas, principalmente Violante do Céu, para a Marquesa de Alorna e, já no século XX, para Florbela Espanca e Irene Lisboa, todas elas «canonizáveis» até certo ponto, mas (por enquanto) sem hipótese de inclusão inequivocamente consensual no panteão histórico-literário português.” (Kłobucka in Feijó et al. 2020: 165)
Neste artigo vamos conhecer uma das autoras portuguesas de seiscentos que, de facto, não faz parte do cânone literário português: Bernarda Ferreira de Lacerda. A escritora portuguesa ultimamente tem gozado de certo interesse por parte da crítica o que se traduz no número crescente de artigos (e.g. Nieves 2003; Álvarez-Cifuentes 2022; Gloël 2023).
Bernarda Ferreira de Lacerda nasceu em 1595 e morreu possivelmente em 1645.1 Curiosamente, ao contrário de muitas outras autoras portuguesas da época, Ferreira de Lacerda não era uma “freira-poetisa barroca”, como as descritas por Klubucka, mas na crónica da ordem dos carmelitas sublinha-se que pensou ingressar na ordem das Carmelitas Descalças (José de Jesus Maria 1753: 546 e ss; Baranda 2003: 234). Neste contexto, porém, Baranda Nieves sublinha o caráter hagiográfico da narrativa sobre Ferreira de Lacerda tecida na crónica de José de Jesus Maria e adverte para o cuidado necessário (2003: 233). De facto, os elogios de Ferreira de Lacerda seguem os padrões e os topoi. Contudo, a sua particular devoção teresiana é sublinhada tanto por biógrafos (José de Jesus Maria 1753: 571 e ss; Ayres Correa 1919: 126), como também pela própria autora. A escritora dedica, pois, um dos seus textos aos carmelitas: trata-se das Soledades de Buçaco dadas à estampa em 1634. Além do mais Ferreira de Lacerda sublinha nesta obra a sua ligação a Santa Teresa. Aliás, o mesmo acontece na obra póstuma – segunda parte da Hespanha Libertada (Gloël 2023: 210-211).
Diogo Barbosa Machado, o autor da Biblioteca Lusitana, assim fala da poeta:
“Com o progresso dos annos se foy augmentando no exercicio das Artes, e sciencias sendo glorioso excesso das Segeas de Espanha, das Safos da Grecia, e das Falconias, Lavras, e Polas de Italia.” (1791: 513)
Apesar de convencional, o elogio e o simples facto de a autora ter sido incluída na obra dedicada aos escritores portugueses, sublinha certo reconhecimento. O mesmo Diogo Barbosa Machado (1786: 75-76; 1791: 514) enumera as seguintes obras da sua autoria: Espanha libertada, Soledades de Buçaco, Ritmo Latino, Décimas em Louvor a Malaca Conquistada2 e Soneto em Louvor de Gaspar Pinto Correia3, Argumentos a Ulisseia de Gabriel Pereira e Soneto em Louvor do Autor4, Três Décimas a Canción Real de Juan Baptista Alexandre5, Soneto à morte de João Peres de Montalvão6, Sextilhas e Soneto a fama de Lope de Vega7 e mais um par de textos literários. Das obras manuscritas que é possível identificar acrescente-se um poema “A El Rey Nosso S.r Dom João o 4 o. da Dona Bernarda Ferreira de Lacerda” cuja cópia se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo como parte de uma coletânea manuscrita (ANTT, Papéis Vários e Curiosos). Apurar o catálogo completo dos textos da sua autoria é, ao que parece, um trabalho por fazer. Esta breve revisão da obra da autora sugere, porém, que além dos textos autónomos, existem poemas soltos da sua autoria que, em muitos casos, faziam parte do aparato paratextual nas obras doutros escritores. Pelo aparato paratextual entendemos aqui o conjunto de textos e elementos no início e no final da obra (Ocieczek 2002: 17) tais como prólogo, prefácio, posfácio, licenças, etc. Neste contexto reconhecemos-lhe na obra um espírito típico da época. Por exemplo em 1631, no Lacrymae Lusitanorum,de Gaspar Pinto Correia, Bernarda Ferreira de Lacerda participa numa espécie de jogo literário. O aparato paratextual desta obra dedicada ao duque de Bragança D. Teodósio II morto em 1630 ostenta muitas peças literárias dedicadas ao autor. Entre elas o soneto de Ferreira de Lacerda a Gaspar Pinto Correia (enumerado na lista de Diogo Barbosa Machado) e um soneto-gémeo do próprio Gaspar Pinto Correia em resposta a Ferreira de Lacerda (1631). Os sonetos aproveitam os mesmos tópicos, ideias, frases: é um caso interessante de diálogo literário no próprio paratexto da obra. É entre outros no contexto deste tipo de reconhecimento literário, dedicatórias de e para Bernarda Ferreira de Lacerda, que Nieves Baranda chega a falar sobre a “fama” da escritora portuguesa. Nieves Baranda discursa precisamente sobre a sua participação nos círculos literários tanto em Castela, como em Portugal. A investigadora enumera autores que lhe dedicaram elogios e inclusive fala sobre:
“difusión de la fama de la portuguesa entre los círculos literarios castellanos más célebres, lo que para una mujer no era poco.” (2003: 238).
Acresce que também os biógrafos modernistas dão conta dos elogios dirigidos à escritora: poesia laudatória da autoria dos poetas e escritores portugueses e espanhóis, inclusive Lope de Vega Carpio e previamente mencionada soror Violante do Céu (Diogo Barbosa Machado 1791: 514-515; 1751: 567 e ss). A sua lista de contactos inclui – ao que parece – Manuel Severim de Faria, cronista e sacerdote português, com uma forte ligação a Évora. Na Biblioteca Nacional de Portugal é depositada uma carta dirigida a Bernarda Ferreira de Lacerda em que o erudita revela-lhe as suas opiniões sobre o poema épico Ulisseia ou Lisboa Edificada de Gabriel Pereira de Castro, como também acerca da educação feminina (BNP-PBA 484: 188-190; ver Pires 2006; Álvarez-Cifuentes 2022: 599-610).
Estaremos, portanto, perante um caso isolado na literatura portuguese de seiscentos? Note-se que Vanda Anastácio no seu projeto recente (https://escritoras-em-portugues.com/en/) revelou nem mais nem menos 270 escritoras portuguesas ativas antes de 1800, entre elas 152 só nos séculos XVI e XVII (Anastácio 2022: 26-27; ver também Gloël 2023: 205)! Nesta ótica Bernarda Ferreira de Lacerda não seria um caso isolado da escritora-mulher e muito menos isolada socialmente. A sua rede de contactos, parcialmente renconstruída pelo projeto Bieses (https://www.bieses.net/bernarda-ferreira-de-lacerda-tableau/), deixa-nos entrever uma mulher que se dava com muita gente. E a lista podia ser enriquecida com outros nomes: João Batista Garcia de Alexandre – autor de gavuras nas Soledades de Buçaco, supramencionados Manuel Severim de Faria, Gaspar Pinto Correia, Violante do Céu, Lope de Vega Carpio e muitos outros. Em Évora, na Biblioteca Pública de Évora, num dos exemplares da sua Hespanha Libertada (cota do exemplar NReservado 1696) encontramos o soneto manuscrito da mão, possivelmente, do antigo proprietário da obra (Fernando Vaz Cepa? Outro?). O texto deixa-nos perceber o fenómeno da escritora seiscentista. Termino, portanto, com o próprio soneto de Évora:
Soneto
Á Señora D. Bernarda Autora deste livro: aludindo a primeira e segunda parte da Espanha libertada heroicamente escritas pelo felice engenho desta senhora8
Dad Senhora en empresas venturosas
Satisfaçiones al comũ contento,
En quanto á vuestra voz em mi tormẽto
Rios parais de lagrimas penosas.
De Rodrigo las culpas amorosas
Vengadas por el gothico portento,
En vuestro nombre de la Muerte isento
Si infames fueron, quedaran famosas.
Assi cantando con renombre eterno.
De las desdichas de un perdido amante
Sacais España generosas palmas
Cantad las pues, que el clamoroso infierno
Parais en tanto, Con que sois bastante,
a honrar á España, y suspender las almas.
Ambas as imagens: NReservado 1696, fotografia da autora, graças à cortesia da Biblioteca Pública de Évora
- No que diz respeito às datas, Ayres Correa dá como a data da sua morte o ano de 1645 (1919: 134.) A data (1 de outubro de 1645) aparece na crónica de José de Jesus Maria e parece fazer parte do epitáfio (1753: 579-580). A mesma crónica situa o seu nascimento em 1590. Nieves Baranda indica 1595 e 1644 respetivamente (2003: 226). O inventário póstumo dos seus bens, feito pelo seu genro Júlio César de Eça, marido de Maria Clara de Menezes que mais tarde vem a dar a prelo uma das obras da mãe, é datado de 1646 (ANTT, Inventário de bens de Bernarda Ferreira de Lacerda). Parece que a datação, pelo menos no que diz respeito à sua morte, merece revisão. ↩︎
- Texto que consta do aparato paratextual da mesma obra. ↩︎
- Texto que consta do aparato paratextual da obra do mesmo autor dedicada a D. Teodósio II de Bragança, Lacrymae Lusitanorum. ↩︎
- Para ver o paratexto no seu esplendor recomenda-se ver precisamente várias edições de Ulisseia ou Lisboa Edificada por Gabriel Pereira de Castro. Cada uma delas tem um conjunto paratextual diferente tecido por poemas, discursos, censura… ↩︎
- O título completo: Canción real al altissimo misterio de el Ave Maria en la Sacratissima Encarnacion de el Verbo Eterno por Juan Bautista Garcia de Alexandre. É, aliás, uma obra extremamente interessante, porque quase na sua metade composta por poemas em louvor ao autor escritos por exemplo por soror Violante do Céu. Esta obra permite ver o convívio literário a nível do paratexto. ↩︎
- Na coletânea publicada em 1639 por Pedro Grande de Tena: Lágrimas panegiricas a la temprana Muerte del gran poeta, y teologo insigne Doctor Juan Perez de Montalban. ↩︎
- De facto, em 1636 Ferreira de Lacerda contribui com dois textos para uma coletânea postuma dedicada a Lope de Vega (Pérez de Montalbán 1636: 42r-46r e 137v; ver mais em Baranda 2003: 238). Nos textos chora a morte do poeta: “Perdi de mis aplausos el motivo,/Perdi la heroica pluma” (1636: 42v) e mais adiante: “Tu ya a los mismos Astros preferido/entre mares de luz, golfos de gloria,/Eres eterno Sol, si Apolo has sido.”(137v) ↩︎
- O soneto é escrito por uma mão muito legível e o texto consegue-se transcrever facilmente. No entanto, em jeito de “experimentação” usou-se para a sua leitura o Modelo do Transkribus “Portuguese Handwriting 16th-19th century” (https://readcoop.eu/model/portuguese-handwriting-16th-19th-century/) que, neste caso, deu resultados bastante satisfatórios, tendo-se introduziado as correções necessárias. ↩︎
Em 2016 defendeu na Universidade de Varsóvia a tese de doutoramento dedicada a D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques (galardoada com Summa cum Laude). Desde 2011 trabalha na Universidade de Varsóvia dando aulas relacionadas com a cultura portuguesa. No ano letivo 2016/2017 trabalhou na Universidade Jaguelónica. Participou em conferências, congressos e cursos. Publicou vários artigos em português, polaco e espanhol dedicados à história e à literatura portuguesas tendo desenvolvido pesquisa, entre outros, sobre a produção literária do período da união ibérica e a "história lendária" numa aproximação comparatista. Foi bolseira do IC e do NCN.