No início, gostaria apenas de salientar que este artigo não é um ataque ao cristianismo. O seu objetivo é apenas mostrar um certo sistema de interdependência entre os dois poderes, para explicar o papel da Instituição da Igreja na formação da política medieval.
A Idade Média foi marcada por uma profunda religiosidade. Nesse período, o cristianismo deixou a sua marca em quase todas as esferas da vida dos reinos, das sociedades e dos indivíduos. A política, a cultura, a educação, o quotidiano, as visões do mundo, etc. foram amplamente influenciados pela fé e pela instituição da Igreja que adquiriu certa exclusividade religiosa na Europa. No entanto, a difusão da ideologia e o controlo do continente exigia influências e um amplo alcance, o que, por sua vez, implicava penetrar nas estruturas políticas dos reinos europeus. A ameaça a tais ambições era a desobediência, que exigia a introdução de uma medida repressiva. Uma das mais comuns foi o isolamento, ou seja, a excomunhão, que se tornou quase uma «tradição nacional» na história medieval portuguesa. Mas poderia um rei ser realmente castigado? Terá sido a excomunhão realmente uma ameaça? Qual o seu significado para o rei e para o reino?
Realeza e Igreja
Os poderes secular e eclesiástico estavam entrelaçados, criando um mecanismo sensível de dependências. O processo de consolidação ou integração dos dois poderes foi fortemente condicionado pela dura realidade após o colapso do Império Romano. Foi nessa altura que a Igreja começou a ganhar uma posição muito forte e a unir as monarquias europeias. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a Europa desintegrou-se, e a Igreja continuou a ser a única instituição estável que sobreviveu a esta «catástrofe do mundo civilizado». Em face do colapso da autoridade central secular, foi a Igreja, com a sua própria organização, que carregou o fardo da reconstrução das estruturas de poder destruídas. Pode dizer-se que materializou a simbiose entre o mundo romano e o mundo bárbaro (Hirst 2012: 24-32). A introdução da instituição eclesiástica no reino reforçou a estrutura interna de qualquer jovem estado europeu. Na Igreja procurou-se a tradição romana, que era vista como o pilar da civilização, e no Papa buscou-se o apoio e a liderança. Este era visto como o representante de Deus na Terra. Um forte argumento defendia que a primazia papal derivava de um mandato divino, e não de uma concessão política, pelo que os papas medievais reivindicavam poder ilimitado, tanto espiritual quanto mundial, competindo com os imperadores pela supremacia, governando o Estado da Igreja e estabelecendo normas em todos os cantos da sociedade cristã. Tal poder permitiu-lhes imiscuir-se na política europeia.
E assim chegamos à relação entre os reis e os papas, que era frequentemente vista, em primeiro lugar, como vassalagem e, em segundo lugar, como parte de uma tentativa geral dos papas medievais de se elevarem a governantes do mundo. Era o Papa que decidia sobre uma espécie de «ser ou não ser» do reino. Mesmo as coroações eram feitas pelas mãos dos bispos, «representantes da vontade de Deus». O Papa era reconhecido como o árbitro supremo, e as suas decisões eram acatadas em casos de divergências e conflitos régios. A relação entre a monarquia e a Igreja no caso de Portugal é particularmente significativa desde o início da sua formação. Falamos aqui não só sobre o papel da cooperação entre os reis e a Igreja no processo de Reconquista da Península Ibérica, mas também sobre o papel do Papa no estabelecimento do Reino de Portugal. No século XII, Afonso Henriques conseguiu que Portugal fosse reconhecido como reino independente pela Igreja Romana e, por conseguinte, também pelo rei de Leão e Castela. Foi a decisão do Papa que forçou os reis a reconhecer o novo reino. Em 1179, o Papa Alexandre III reconheceu Afonso Henriques como Rei e Portugal como reino na Bula Manifestis Probatum. O rei e o reino foram assim colocados sob a proteção da Santa Sé o que significou uma forte posição na cena internacional.
No entanto, numa tal relação, nada é gratuito. A Protectio e o poder que o Vaticano «deu» aos governantes foi comprado com terras, privilégios, dinheiro sob a forma de impostos e obediência. Este preço elevado e o abuso de poder por parte do clero conduziram repetidamente a graves conflitos. Em Portugal, o século XIII é marcado por profundas fricções entre os dois poderes. A história da relação da primeira dinastia portuguesa, de Borgonha, com a Igreja é bastante turbulenta. Embora houvesse fortes laços de cooperação entre a administração régia e a Santa Sé, não faltavam também as «guerras» políticas. Mas se o rei se recusasse a fazer o que o Papa pensava ser correto, este poderia excomungá-lo, o que significava que o rei seria afastado da Igreja, isolado da comunidade europeia e cortado do favor e da arena política internacional.
Excomunhão – a espada papal contra os reis rebeldes
No processo de consolidação da Igreja Católica, a imposição do dogma e da rigidez hierárquica foram elementos fundamentais da organização da instituição. Para manter a ordem e o poder, a Igreja teve de criar instrumentos de persuasão baseados na lei canónica. Um desses meios de repressão foi, e continua a ser, a sanção da excomunhão. O termo excomunhão vem do latim – excommunicatio/ excommunicare– e significa «fora da comunidade», «a expulsão de uma pessoa da Igreja»[1]. Esta punição, especialmente na Idade Média, era de grande importância social e política. Era, em princípio, utilizada para remover os líderes cristãos e outros crentes desobedientes que ignoravam quaisquer arranjos religiosos ou políticos da Igreja. Foi também utilizado para minar ou restringir os interesses de vários reis, ou seja, para os controlar e pressionar.
A principal consequência da excomunhão foi o rompimento do vínculo entre o cristão
e a Santa Sé, privando-o da intercessão e da proteção proporcionada por essa instituição e privando a pessoa excomungada dos bens espirituais dados através da participação na missa. A pessoa excomungada não podia participar na eucaristia, não podia oferecer sacrifícios, o seu nome foi riscado dos dípticos e foi-lhe também negado um funeral religioso (Wojciechowska 2013: 26). Estas regras aplicavam-se tanto ao clero como aos leigos, embora no caso do clero ainda houvesse outras consequências. Inicialmente, a excomunhão significava isolamento total; os fiéis não eram autorizados a ter contacto com a pessoa excomungada, nem lhes era permitido entrar nas igrejas ou ficar no exterior a ouvir a palavra de Deus. Era proibido levantar orações públicas para a pessoa excomungada. «O Papa Gelasius I (492-496), numa tentativa de restaurar a ordem, a disciplina e o Estado de direito na Igreja, criou quase uma ideologia de contágio a partir dos excomungados» (Wojciechowska 2013: 26). É claro que, ao longo dos anos, as regras mudaram, foram alternadamente relaxadas e reforçadas.
No século XII, o Papa Inocêncio III permitiu que a família mantivesse contacto com a pessoa excomungada. A natureza individual da punição também começou a ser enfatizada, pois punir toda a comunidade prejudicaria pessoas inocentes. O Papa Inocêncio IV proibiu a imposição desta punição a grupos e comunidades organizadas. Isto também se aplicava aos reinos. Inicialmente, a excomunhão de um monarca podia significar a excomunhão de todo um reino, mais tarde só o interdito geral tinha tal poder. Mas será que esta punição teve o mesmo impacto sobre os sujeitos que sobre os monarcas? Como era na prática o cumprimento das suas regras? Poderia realmente ameaçar os reis? A resposta é afirmativa, embora a punição nem sempre fosse tão dura. Tudo dependia do tempo e das circunstâncias. Uma coisa é certa, poderia ameaçar o poder e a imagem do rei e do seu reino. Na história europeia, muitos líderes foram dolorosamente consciencializados disto, tais como D. Afonso II, D. Sancho II ou D. Afonso III. Eles exemplificam quão rapidamente foi possível cair em desgraça e quão reais eram as consequências desta sanção.
Afonso II – conflito, morte e absolução
O caso de D. Afonso II ilustra perfeitamente as verdadeiras consequências espirituais e de autoridade da excomunhão. O seu reinado ficou marcado pelo conflito com a Santa Sé. O reconhecimento de Portugal como reino pelo Papa não foi barato; Afonso Henriques e Sancho I concederam grandes privilégios à Igreja, o que levou ao enfraquecimento do poder real e à criação, de certa forma, de um Estado dentro de um Estado. Afonso II, querendo retificar a situação, começou a enfraquecer o poder eclesiástico em Portugal e assim entrou em conflito com o clero (Gonçalo 2016). Isto levou à sua excomunhão pelo Papa Honório III em 1212.
As consequências foram graves. A excomunhão não só eximia os súbditos da obrigação de obedecer ao rei (o que na realidade era complicado), como invalidava o testamento do falecido, proibia o sepultamento num lugar consagrado e difamava o nome do punido, apagando, de facto, a sua memória (Wojciechowska 2013: 26-30). A falta de um funeral adequado era uma desgraça para o falecido, uma ameaça mortal para a sua alma. Embora o rei tenha mostrado remorsos e prometido alterar a sua política anti-Igreja, não obteve absolvição até à sua morte. Não pôde ser enterrado numa igreja, não teve direito aos ritos funerários cristãos, o seu testamento podia ser desafiado em qualquer altura, para não falar das consequências espirituais. O arrependimento e a penitência não retiraram a sanção; esta foi levantada por absolvição, que podia ser obtida de acordo com regras restritas. Inocêncio III indicou que, embora as orações públicas por um falecido excomungado não fossem permitidas antes da concessão da absolvição, esta poderia ser concedida após a morte, desde que a pessoa punida mostrasse sinais de arrependimento antes de falecer (Wojciechowska 2013: 28). Isto permitiu um sepultamento digno em solo consagrado e orações públicas pela alma do morto. Para que tal reabilitação fosse possível, o herdeiro do falecido tinha de fazer uma reparação em nome dele, o que era o caso de D. Afonso II e o seu filho. «Sancho II pagou indenizações à Santa Sé e ao clero permitindo, assim, que seu pai fosse absolvido da excomunhão e recebesse os ritos fúnebres e uma sepultura cristã devida a um rei» (Vian 2008: 4). Só após a resolução do conflito com a Igreja pelo seu sucessor Sancho II, D. Afonso II pôde finalmente (em 1223, ou seja, oito anos depois da sua morte) ser sepultado em Alcobaça, de acordo com o seu testamento. O bom nome do Rei foi restaurado, os seus restos mortais postos a descansar com dignidade num lugar sagrado, e assim a sua memória continua viva.
A Igreja como kingmaker – D. Sancho II e D. Afonso III
Embora conseguisse obter a absolvição do seu pai, ao longo do tempo o próprio D. Sancho II caiu em desgraça com a Santa Sé. Durante o seu reinado, houve mais divergências com os bispos do Porto e de Lisboa, que acusaram o rei de não defender os clérigos e as ordens religiosas de abusos por parte da nobreza. Também discordaram da isenção do serviço militar e do privilégio do fórum (Vian 2008: 4). Ao impor a excomunhão ao rei, o Papa Gregório XIX quis forçar o monarca a respeitar os direitos e imunidades da Igreja. Sem dúvida que existiam razões políticas marcantes por detrás disto. D. Sancho II era um bom estratega militar e expandiu o território do Estado, mas não conseguiu controlar as disputas internas com o clero e a nobreza. Em 1234, o Papa Gregório IX excomungou o rei, e devido ao caos crescente, o Papa Inocêncio IV apelou ao povo para que obedecesse ao novo rei, D. Afonso III. O Papa ordenou, o povo obedeceu? A vontade do papa era identificada como a vontade de Deus, mas neste caso também foi favorecida pelo fato de que essa mudança atendia aos interesses de alguns. O que aconteceu no caso de D. Sancho II foi uma verdadeira reação em cadeia. A excomunhão isentou os súbditos da obediência, embora não privasse o rei do seu trono. Contudo, segundo o pensamento cristão, toda a autoridade terrena vem de Deus, representado pela Igreja, chefiada pelo Papa. Se o Papa deixou de reconhecer a autoridade do rei, isto era equiparado a tirar-lhe a sua concessão divina e em consequência, o trono. Uma vez que a Igreja tinha tal poder e autoridade, o Papa Inocêncio IV sentiu-se livre para lançar a bula Grandi non immerito (1245), não só destronando D. Sancho II, mas também elegendo o seu sucessor. Com a bênção papal, o irmão do rei removido, D. Afonso III, subiu ao trono (Marques 2001: 181-184). Isto não significou o fim do conflito, é claro. O reino dividiu-se em apoiantes e opositores da decisão de Santa Sé, demonstrando que nem todos reconheciam tal autoridade ao poder papal. Contudo, o não reconhecimento da vontade papal ameaçaria um interdito geral, o que poderia excluir todo o reino da comunidade. Nada, porém, garantia a proteção eterna. Com o tempo, D. Afonso III também caiu no descrédito da Santa Sé e foi também excomungado (Silva 2019: 36).
Conclusões
A civilização europeia da Idade Média era uma civilização cristã. A condição para o acesso a esta civilização era o batismo e a obediência à Santa Sé. O Papa «dava» poder político e financeiro àqueles que apoiava, desempenhando assim um papel importante na arena internacional, capaz de intervir livremente em sucessões, determinar alianças e guerras e influenciar significativamente as decisões dos governantes da Europa. Interessando-se por todos os aspetos da vida da população europeia, a Igreja construiu a sua posição e o seu poder ao longo dos séculos, e assumiu o papel de intermediário entre o poder real e as outras potências que governam o mundo. Várias medidas de repressão foram utilizadas para manter as coisas sob controlo. A excomunhão era uma ameaça real de isolamento e exclusão social e política, o que, especialmente naqueles tempos, era perigoso tanto para os indivíduos como para as autoridades estatais.
Voltemos então às questões-chave – A excomunhão foi realmente uma ameaça para o rei? Sim, as suas consequências tiveram um impacto real nas vidas, nos poderes e nas reputações dos monarcas, como se pode ver pela história dos monarcas portugueses. Embora tanto o rei como o Papa tivessem o poder, o mandato papal era mais amplo e mais fortemente condicionado pela ideologia, sendo o seu fundamento a fé. Com o tempo, a excomunhão perdera a sua força e já não causava temor. Começou a perder o seu significado e poder, tal como a Igreja começou a perder a sua força. Mas naquele tempo, a autoridade secular e espiritual estavam intimamente interligadas, formando uma espécie de sistema complexo. Por vezes, as fronteiras entre as duas eram confusas, e batalhas constantes sobre jurisdição e influência devastaram ambos os lados.
A excomunhão era muitas vezes uma questão política, mas será possível encontrar nesses atos, uma história sobre a procura da justiça, haverá algo heroico e justo na rebeldia dos reis portugueses, ou a justiça estaria do lado da Igreja, e a excomunhão era um castigo merecido e necessário para manter a coesão nacional. A excomunhão dos reis na Idade Média revela a complexidade das interações entre a autoridade eclesiástica e a monárquica. Este ato pode ser visto como um instrumento de poder político. A Igreja, ao utilizar essa medida, não apenas tentava preservar a sua autoridade e influência, mas também moldava o equilíbrio de poder na esfera política. Para os reis, arriscar-se a ser excomungado podia ser uma forma de resistência a uma autoridade que consideravam excessiva ou injusta, lutando talvez não apenas pelos seus próprios interesses, mas também por um futuro que vissem como mais benéfico para os seus reinos. Por outro lado, a excomunhão pode ser compreendida como uma forma de aplicação de uma lei moral, na qual a Igreja visava manter uma ordem espiritual e ética dentro da cristandade. Neste contexto, os reis que desafiaram a excomunhão poderiam estar, por sua vez, a violar normas que a Igreja considerava essenciais para a moralidade e a coesão da sociedade cristã. A resistência dos monarcas, em alguns casos, pode ser interpretada também como uma luta por uma visão alternativa de justiça e ordem para o seu reino. Assim, as ações dos reis e da Igreja podem ser vistas sob múltiplas perspetivas: como uma batalha pela legitimidade, uma luta pelo poder, ou uma disputa sobre o que constituía a verdadeira justiça e governança. A excomunhão, portanto, não é apenas uma questão de obediência ou desobediência, mas também um ponto de interseção entre diferentes conceções de lei, moralidade e visões do mundo.
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Guiada por uma paixão pela cultura europeia, membro de uma pequena família internacional de amigos de todos os cantos do mundo, é licenciada e mestranda em Filologia Portuguesa. Atualmente, espera começar o segundo mestrado, desta vez, em História, com especialização em Antropologia Histórica. Estudou na Universidade de Varsóvia e na Universidade de Lisboa. Sempre a viver entre as suas duas terras - Polónia e Portugal.