Mulheres no Fado de Coimbra: explorando tabus de género


Apesar dos progressos registados na sociedade e da melhoria da situação e do aumento dos direitos das mulheres, ainda existem espaços onde as mulheres permanecem isoladas, e a sua voz só agora está a ganhar importância. Um exemplo disto são as tradições como o Fado de Coimbra, que durante séculos foram dominadas pelos homens e só no último século é que a tradição pôde mudar e abrir-se a inovações como a participação das mulheres nesta tradição. O texto que se segue, da autoria de Marcela Sieradzka e Justyna Żmijewska, foi apresentado no Congresso Estudantil “Vozes nas Margens”, em outubro de 2023.


Introdução

O presente trabalho visa explorar o tema do papel da mulher no Fado de Coimbra. Pretende-se observar e discutir o tabu que envolve a participação das mulheres na criação desta tradição, já que essa continua envolta em tabus sociais e estereótipos de género arraigados na sociedade portuguesa. Como já sabemos, o fado coimbrão, conhecido também sob o nome de fado académico, é, segundo a tradição, protagonizado somente por homens, principalmente por estudantes universitários. Contudo, há muitas raparigas e mulheres que também querem constituir parte do fado de Coimbra. Por isso, surgiram debates sobre se as mulheres devem ser autorizadas a cantar a canção de Coimbra. Portanto, neste trabalho examinamos o contexto histórico e social do Fado de Coimbra para compreender a presença, a exclusão das mulheres ao longo dos tempos, consideramos também as influências das tradições culturais e sociais. A visão estereotipada de que é uma expressão exclusivamente masculina tem sido um obstáculo significativo para as mulheres que desejam entrar nesse meio e leva à desvalorização das contribuições femininas nesse contexto. Com base em inquéritos realizados a jovens fadistas, homens e mulheres, será apresentada a perspetiva de cada uma das partes. Igualmente, pretendemos referir-nos a artigos publicados online que falam do assunto e compará-los com as respostas dos inquéritos, querendo assim mostrar como a reação à participação feminina no fado coimbrão mudou durante os últimos anos. Enquanto alguns argumentam que a inclusão feminina pode enriquecer o Fado de Coimbra, outros temem que isso possa diluir a autenticidade e tradição do género. Este estudo procura lançar luz sobre as razões históricas para a exclusão das mulheres, bem como as perspetivas contemporâneas sobre essa questão. Explora como as mulheres estão se esforçando para superar as barreiras e contribuir de maneira mais substancial para o Fado de Coimbra. Ao investigar a interseção entre música, género e identidade cultural, este artigo oferece uma análise abrangente das complexidades e desafios enfrentados pelas mulheres no contexto do Fado de Coimbra.

1. Génese do problema

Antes de passar para falar sobre a génese do problema e do género musical, queríamos explicar a ténue diferença entre o Fado Coimbrão e a Canção de Coimbra. O termo Canção de Coimbra é muito mais englobante do que o termo Fado Coimbrão. A Canção, porém, abrange todos os géneros musicais como fados de Coimbra, baladas de Coimbra, trovas de Coimbra, guitarradas de Coimbra, entre outros.

Enquanto à génese, existem várias teorias sobre as origens do fado coimbrão, no entanto, é importante mencionar que já no século XVI a canção dos estudantes era reconhecida, Jorge Cravo na sua curta nota sobre a história do Fado de Coimbra escreveu assim:

Sabe-se, aliás, que pelo menos, desde o século XVI, era hábito os estudantes de Coimbra cantarem e tocarem, noite dentro, pelas ruas da cidade. Prova factual é a missiva que o rei D. João III envia ao então reitor da Universidade, a 20 de Junho de 1539, dando conta da necessidade em se pôr fim à algazarra e às cantorias que os estudantes faziam até altas horas da noite, já que eram muitas as queixas dos habitantes da velha urbe.

Jorge Cravo, 2002

Nos finais dos anos cinquenta do século XX, o fado coimbrão ganhou um tom intervencionista político-social, por exemplo, na música de Zeca Afonso, cuja canção Grândola, vila morena foi utilizada como senha pelo Movimento das Forças Armadas, e outras, por exemplo, Os Vampiros, Trova do vento que passa, Cantigas do Maio ou Menino do Bairro Negro tornaram-se símbolos de resistência anti-Salazarista da época. Por consequência, as pessoas que defendem o fado tradicional, interdito às mulheres, explicam que este tipo de fado surgiu como uma forma da manifestação e da resistência contra ao regime salazarista e foi feito para e pelos homens.

Os defensores do fado tradicional acrescentam também que outra explicação encontra-se nas origens da própria serenata, ou seja, a serenata é uma manifestação amorosa da parte de um estudante em relação a uma tricana (rapariga do povo que usava traje característico, de que o xaile era um dos elementos fundamentais) que exige diversas regras de comportamento, por exemplo, a amada nunca se mostra à janela, porque é demasiado recatada, mas acende e apaga a luz três vezes para agradecer. Adicionam também que por esse motivo, permitir a cantar este tipo de fado a mulheres seria uma inversão dos papéis do homem e da mulher.

A longa história de exclusividade de género nas instituições de ensino, que proibia o acesso das mulheres à universidade, criou um ambiente académico fortemente dominado por homens. Essa exclusão de género perpetuou-se na tradição do Fado de Coimbra. Como dizem os defensores do Fado interdito às mulheres, usando como exemplo as palavras do Dux Veteranorum da Academia do Porto, Américo Martins, mencionadas num artigo do Jornal Público: “O fado, canção de Coimbra, não foi feito para mulheres, foi feito para homens” (2007). No certo sentido, essa raiz masculina do Fado de Coimbra é um testemunho da história da desigualdade de género no ensino superior, que moldou profundamente a cultura académica e artística.

Contudo, outras mulheres tomaram ações e graças a isso hoje as mulheres têm a sua representação na canção de Coimbra. Os entrevistados mencionaram, entre outros, Cristina Cruz, Maria Teresa de Noronha e Estela Abrantes. Vale a pena ressaltar que Cristina Cruz é a primeira fadista que cantou o fado de Coimbra em público e editou um álbum, “Coimbra Menina do Meu Olhar”, o que foi alvo de críticas. Outra questão que é negada é o facto de Cristina Cruz não ser estudante da universidade de Coimbra, pois estudou em Aveiro.

Ultimamente surgiram ainda mais vozes femininas, por exemplo, Beatriz Villar, uma jovem conimbricense, surpreendeu todos a cantar no programa Got Talent Portugal 2022 o fado de Coimbra, interpretando o poema “Asas Brancas”, recebeu quatro sins dos jurados Manuel Moura dos Santos, Pedro Tochas, Cuca Roseta e Sofia Escobar e passou às semifinais, onde interpretou a famosa “Trova do vento que passa”, infelizmente não ganhou. Hoje em dia, Beatriz é uma fadista cada vez mais conhecida que dá concertos praticamente por todo o país. Em 2022, gravou e publicou o seu primeiro álbum de fados de Coimbra intitulado “Viragem”. É também professora de canto na Escola de Fado de Coimbra, cujo objetivo é motivar mais mulheres a cantarem o fado coimbrão. A Escola que acabamos de mencionar não é o único lugar onde as mulheres podem aprender as técnicas de cantar, o prof. Jorge Cravo, que dá aulas de interpretação na Secção de Fado, tem várias alunas nas suas aulas e a secção já se tem feito representar de forma institucional por mulheres a cantar fados de Coimbra.

Existe também a Estudantina Feminina de Coimbra da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra. O grupo surgiu como uma forma de recuperação do outro grupo feminino “As garotas” que esteve em atividade na Secção de Fado de 1988 a 1990. O grupo, composto exclusivamente por mulheres, criado em 2011, canta música tradicional portuguesa, não propriamente bem fado. No entanto, as representantes do grupo, como a Tânia Fonseca ou Constança Peixoto, começaram também a cantar o fado coimbrão. Perguntada por que quer cantar o fado coimbrão, uma tradição maioritariamente masculina, a Tânia responde:

Tanto eu, como as minhas amigas e colegas queremos demonstrar a todas as mulheres que podemos, só precisamos de começar por algum lado, porque em nenhum lado está escrito que é proibido. A sociedade é que remete a tal, por isso, devemos e temos que contrariá-la. Porque nós podemos cantar fado de Coimbra e há muitas mulheres com muito potencial que só precisam de alguém, no caso nós, que demonstrem que é possível um grupo de mulheres no Fado de Coimbra.

Tânia Fonseca, 2023

Igualmente, em 2022, no dia 11 de março, a cantora Vânia Couto, acompanhada por Inês Graça e Joana Gonçalves, realizou o concerto “História do Fado de Coimbra na Voz Da Mulher”, tentando normalizar as vozes femininas a interpretar as canções mais conhecidas de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou António Marinheiro. O espetáculo foi entrelaçado com as apresentações sobre a história e a evolução do fado coimbrão.

2. Vozes da comunidade académica – inquéritos / uma guerra de perspetivas

A análise dos inquéritos revela uma visão multifacetada sobre a presença das mulheres no Fado de Coimbra, uma tradição musical profundamente enraizada em Portugal. Os relatos dos entrevistados, que incluem estudantes da Universidade de Coimbra, lançam luz sobre a evolução histórica da participação das mulheres neste género musical, revelando a influência das tradições académicas e culturais que moldaram o Fado de Coimbra ao longo do tempo. Desde as raízes históricas da exclusão das mulheres até as mudanças recentes impulsionadas por cursos e escolas de Fado de Coimbra dedicados às mulheres, a discussão abrange uma ampla gama de perspetivas. Este exame cuidadoso destaca como as opiniões variam sobre a inclusão das mulheres neste género musical tradicional e como essa inclusão é vista como um caminho natural e enriquecedor. A análise destes inquéritos é fundamental para compreender não apenas o passado e o presente, mas também o potencial futuro da presença das mulheres no Fado de Coimbra, à medida que a tradição continua a evoluir.

Muitos entrevistados concordam que, conforme a tradição, o Fado de Coimbra era considerado um domínio masculino. No entanto, a maioria reconhece que a tradição não deve ser uma barreira para as mulheres, e não há regras escritas que as impeçam de participar plenamente.

A maioria dos entrevistados considera irrazoável a exclusão das mulheres. Acreditam que as razões históricas para essa exclusão eram baseadas em estereótipos de género e na falta de igualdade de oportunidades educacionais. A visão de que as mulheres não poderiam cantar o Fado de Coimbra era um mito desafiado ao longo do tempo.

A maioria dos entrevistados apoia fortemente a participação das mulheres no Fado de Coimbra. Eles acreditam que as mulheres devem ter o direito de cantar, compor e executar o género musical, destacando que a tradição deve evoluir com os tempos. A inclusão das mulheres no Fado de Coimbra não é vista como uma ameaça ao património cultural. Pelo contrário, os entrevistados acreditam que a diversidade de vozes pode enriquecer a tradição e torná-la mais acessível e relevante para um público mais amplo.

A evolução do papel das mulheres no Fado de Coimbra é um reflexo da mudança na sociedade e na música. Embora a tradição tenha sido exclusiva dos homens no passado, as mulheres agora estão a desafiar os estereótipos de género e a fazerem a sua marca no género. A inclusão das mulheres é vista como uma progressão natural e necessária para enriquecer o património cultural do Fado de Coimbra, tornando-o mais diversificado e acessível a todos. Uma parte essencial dessa mudança é a disponibilidade de cursos e escolas de Fado de Coimbra para as mulheres atualmente. As entrevistas mostram que na Secção de Fado da Universidade de Coimbra já têm alunas aprendendo e apresentando-se regularmente, ou na Escola de Música e Artes de Coimbra onde ensina Beatriz Villar. Infelizmente, porém, isso não significa que a sua realização do fado seja igualmente apreciada e aceite na esfera pública. Uma das tradições mais importantes para os estudantes de Coimbra é a Queima das Fitas que começa com a serenata onde os alunos dos últimos anos despedem-se da cidade ao cantar uma Balada de Despedida, até hoje foi e é exclusivamente actuada por homens.

Conclusões

Apesar das mudanças progressivas na sociedade, o tabu em relação à participação das mulheres no Fado de Coimbra persiste. No entanto, um movimento crescente está desafiando essas normas de género e buscando uma inclusão mais significativa das mulheres na tradição.

Séculos de injustiça, discriminação e supressão das mulheres deixaram uma marca nas tradições. A falta de acesso à educação, a sua relegação para a sombra dos homens e as restrições ao seu desenvolvimento e atividades são evidentes nas raízes ainda masculinas da tradição académica do fado de Coimbra. Felizmente, a sociedade mudou e o papel e os direitos das mulheres também. As tradições que ainda trazem as marcas das injustiças do passado estão também a transformar-se. A voz das mulheres, cada vez mais forte e mais alta, deve ser respeitada na evolução da tradição académica do fado de Coimbra.


BIBLIOGRAFIA

Respostas dos inquéritos (um exemplar anexado abaixo) de: Guilherme Costa, Simão Mota, Pedro Sendim e Tânia Fonseca.

Brandão, Daniel (2005) “Fado académico interdito a mulheres”. Em: JornalismoPortoNet. https://www.jpn.up.pt/2005/04/28/fado-academico-interdito-a-mulheres/ [14.05.2022].

CAMPEÃO DAS PROVÍNCIAS: “Espectáculo quer normalizar a presença da mulher no Fado de Coimbra”. https://www.campeaoprovincias.pt/noticia/espectaculo-quer-normalizar-a-presenca-da-mulher-no-fado-de-coimbra [15.05.2022].

Cravo, Jorge (2002) “História do Fado de Coimbra”. Capas Negras. http://capasnegras.com/historia_fado.html [15.05.2022].

JORNAL DE NOTÍCIAS: “Fadista edita polémico CD de canção e fado de Coimbra”. https://www.jn.pt/arquivo/2007/fadista-edita-polemico-cd-de-cancao-e-fado-de-coimbra-683175.html [15.05.2022].

NOTÍCIAS DE COIMBRA: “Beatriz Villar quer continuar a surpreender no Got Talent Portugal”. https://www.noticiasdecoimbra.pt/beatriz-villar-quer-continuar-a-surpreender-no-got-talent-portugal-com-videos/ [15.05.2022].

    INQUÉRITO

    1) Segundo a tradição, as mulheres podem cantar, escrever letras e criar música para o fado de Coimbra?

    2) Porque é que as mulheres não podiam participar no fado de Coimbra?

    3) Considera razoáveis as razões pelas quais as mulheres foram excluídas da criação desta tradição? Pode enumerar essas razões?

    4) Na sua opinião, as mulheres deveriam ser autorizadas a cantar o fado de Coimbra?

    5) Atualmente, é permitido às mulheres integrar oficialmente grupos de fado e cantar fado de Coimbra?

    6) Considera que é um património cultural dos homens e que a inclusão das mulheres nesta tradição vai retirar algo aos homens?

    7) Conhece alguma mulher que tenha criado ou esteja a criar, de alguma forma, a tradição do fado de Coimbra?

    8) Considera que as mudanças na tradição estão a ir na direção certa?

    9) Porque é que quer participar na criação desta tradição? Que significado tem para si?

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    Estudante do terceiro ano da licenciatura do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade de Varsóvia. Poeta autoproclamada desde a escola secundária. Guiada pela paixão de aprender línguas e de descobrir novas culturas. Orgulhosa mãe de duas gatas que gosta de pôr os seus sentimentos no papel.

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    Guiada por uma paixão pela cultura europeia, membro de uma pequena família internacional de amigos de todos os cantos do mundo, é licenciada e mestranda em Filologia Portuguesa. Atualmente, espera começar o segundo mestrado, desta vez, em História, com especialização em Antropologia Histórica. Estudou na Universidade de Varsóvia e na Universidade de Lisboa. Sempre a viver entre as suas duas terras - Polónia e Portugal.

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