Os mitos africanos entrelaçados na narrativa “O Alegre Canto da Perdiz” de Paulina Chiziane

Uma mulher africana à procura do seu próprio caminho

Foto de Aramudi @aramudi_jewellery via Unsplash

Os mitos, como criações fantasiosas, procuravam explicar todos os fenômenos, que não tinham nenhuma explicação simples. Desde os tempos antigos, eles têm sido importantes e presentes em todos os países e culturas do mundo, construindo a mitologia, de carácter um pouco mágico, um pouco religioso, e, embora sejam todos um pouco diferentes uns dos outros, representam sobretudo o início – do mundo ou de situações e verdades presentes numa dada sociedade. As mitologias permanecem uma fonte de inspiração para muitos artistas até os nossos dias, quer para criar as histórias na sua base, quer para encontrar as origens de certas questões. Estas histórias ainda estão vivas e podem influenciar a forma como as pessoas de um determinado meio cultural vêem o mundo. 

Entre as características que os mitos e as religiões têm em comum, é o facto que apresentam a determinada verdade e deste modo enraizam certa mundividência. Por isso, muitas vezes, para mudar esta forma de ver o mundo, deve-se mostrar outro ponto de vista. Assim fez Paulina Chiziane, uma das mais conhecidas escritoras de Moçambique, vencedora do Prêmio Camões 2021. 

Nas suas obras, a autora concentra-se primeiramente nas mulheres e os percursos das suas vidas, assombradas pelas desigualdades sociais entre homens e mulheres na sociedade moçambicana. Um dos pontos mais importantes que pode ser observado ao ler os seus romances é a posição inferior das mulheres em relação aos homens. O sistema patriarcal funciona até hoje na sociedade moçambicana, mas, graças às autoras como Paulina Chiziane, as mulheres ganham a sua própria voz. Chiziane nota que:

Os problemas da mulher surgem desde o princípio da vida, de acordo com as diversas mitologias sobre a criação do mundo. Na mitologia bantu, depois da criação do homem e da mulher, não houve maldição nem pecado original. Mas foi o homem que surgiu primeiro, ganhando, deste modo, uma posição hierarquicamente superior, que lhe permite ser governador dos destinos da mulher. Isto significa que a difícil situação da mulher foi criada por Deus e aceite pelos homens no princípio do mundo.

(CHIZIANE, 2013: 199)


Por isso, no seu quinto livro intitulado O Alegre Canto da Perdiz, Chiziane reescreve os mitos africanos dos grupos Bantu, que tratam dos inícios das relações entre dois gêneros e explicam as razões da dominação masculina. Todos os mitos escritos por Chiziane têm uma estrutura semelhante. Começam num tempo indefinido, provavelmente nos princípios do mundo, num lugar parecido ao paraíso que está habitado apenas pelas mulheres, que coexistem em harmonia, solidariedade, paz, sem nenhum tipo de incómodo. Esta situação feliz acaba por causa do aparecimento ou intervenção de um homem. Os homens, em cada mito de forma diferente, entram na sociedade das mulheres, instauram caos e destroem tudo o que as mulheres criaram. Acabam por introduzir uma nova ordem, na qual as mulheres são submissas, dominadas e maltratadas. 

Este tipo de apresentação dos possíveis inícios das relações entre gênero opôs- se às mitologias de povos bantu e a religião cristã onde a mulher foi criada a partir do homem, com a obrigação de o servir. Na versão da autora, as mulheres não são culpadas pelo mal do mundo, nem têm a obrigação de ser submissas porque os homens são mais fortes. A fantasia de Paulina Chiziane ajuda as mulheres a encontrar a sua força feminina e sublinha que a mulher tem o seu valor e pode ser independente. Através da reescrita dos mitos, Chiziane mostra que a tradição de séculos de mitos patriarcais constitui uma das razões da grande desigualdade de gênero. 

Contudo, tudo o que nos rodeia começa e acaba com a fantasia humana. A fantasia, como tudo, pode ter boa ou má influência. Pode construir uma parte da identidade de um povo e funcionar como a forma de compreensão do mundo. Vale a pena lembrarmos que cada fantasia pode ser substituída por outra, introduzindo deste modo outros pontos de vista. 

Bibliografia

CHIZIANE, Paulina (2008).  O Alegre Canto da Perdiz. Lisboa: Editorial Caminho. 

CHIZIANE, Paulina (2013). [Testemunho] Eu, mulher…Por uma nova visão do mundo. Abril–NEPA/UFF, 5.10:199-205.

DE MATTIA, Marie Claire (2020). Eu, mulher: a visão de Paulina Chiziane de um mundo para mulheres. Revista Mulemba, 12.22: 164-182.

Trabalho apresentado à disciplina de Linguagem e a mídia: texto e discurso, ministrada pelo professor Samuel Figueira Cardoso – Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Varsóvia, semestre de inverno 2021/2022.

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Estudante do terceiro ano da Licenciatura em Estudos Portugueses no Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da Universidade de Varsóvia. Gosta muito de observar o mundo e escrever histórias baseadas nas suas observações.

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