Ruído nas fontes


Nota sobre o livro de Maria de Deus Beites Manso e Maria Fernanda Matias (2025): D. Carlota Joaquina. Entre o dever e a transgressão, Lisboa, Edições Parsifal

O tema desta edição da revista Ponto ¿? Signo é ruído. O ruído faz parte da nossa realidade quotidiana – nos meios de comunicação, nas redes sociais, nas cidades com carros a buzinar e pessoas a gritar. Não é por acaso que se fala da poluição sonora. Mas não é deste ruído que falarei. Hoje quero falar sobre o ruído nas fontes. Perguntarão o ruído nas fontes? Como assim? Pois. Parto do princípio de que, às vezes, há demasiado “ruído” nas fontes: informações contraditórias, de natureza diversa, misturadas com a opinião pública e com opiniões pessoais e até avaliações ambíguas, que é difícil desvendar os mitos ou descobrir as narrativas falsificadas. Na história de Portugal há muitos exemplos disso. Pensemos, a maneira de exemplo, em D. Sebastião: morreu ou não morreu? Desapareceu ou não? Voltará num dia de nevoeiro? Hoje, graças ao trabalho dos historiadores e livros recentes como o de André Belo (2021) sabemos que há muita ficção em torno de D. Sebastião. Outra figura que se pode evocar é, por exemplo, D. Teresa, mãe do primeiro monarca português. Esta, por sua vez, foi vítima de narrativas desprestigiantes que a representavam como a rainha má. Mas D. Sebastião e D. Teresa não são as únicas figuras da história de Portugal em torno das quais existem narrativas míticas e mitificantes ou, pelo contrário, até calumniosas e simplificadas. Uma das personagens que também é de receção ambígua foi D. Carlota Joaquina, rainha consorte de D. João VI. Como notam Maria de Deus Beites Manso e Maria Fernanda Matias, autoras de um livro recente sobre a rainha:

Em torno da infanta-princesa-rainha-imperatriz, criaram-se narrativas e mitos, muitos dos quais instigados por rivais que procuravam manchar a sua reputação, difundindo uma imagem distorcida da rainha: os opositores aproveitaram-se das suas aspirações para lhe atribuírem a responsabilidade de crimes e episódios infames que eles próprios ordenavam, espalhando rumores que a denegriram  (2025: 11-12).

Maria de Deus Beites Manso e Maria Fernanda Matias (2025): D. Carlota Joaquina. Entre o dever e a transgressão, Lisboa, Edições Parsifal, 240 + 16 pp., ISBN: 978-989-35765-4-0.

O livro publicado em 2025 pela editora Parsifal serve precisamente para desvendar estes mitos e lutar contra o “ruído nas fontes”. Não pretende nem elogiar, nem denegrir a rainha, mas sim deixar-nos conhecê-la através de um exame minucioso das fontes. O livro é composto por onze capítulos relativamente curtos que acompanham o percurso de D. Carlota Joaquina – desde a estadia na corte espanhola e a passagem pela corte portuguesa, através do seu casamento com o herdeiro e a vida em Portugal. E, por fim, atravessa ainda os momentos turbulentos da história europeia e da história de Portugal. Manso e Matias deixam-nos perceber o papel da educação no percurso da rainha, as intrigas na corte, a condição da mulher no século XVIII e o contexto sociopolítico, incluindo o caráter transacional das ligações entre as casas reais. “As pessoas, sublinhe-se, eram à época instrumentos de transações e arranjos políticos”, escrevem as autoras (2025: 54). As historiadoras  enriqueceram o livro com imagens, sobretudo pinturas de D. Carlota Joaquina que nos permitem ver o seu percurso de menina a mulher madura. O livro, sempre que possível, tenta mostrar que D. Carlota Joaquina viveu durante tempos tumultuosos em que foi desafiada a ordem estabelecida e, sendo uma mulher ambiciosa, ela própria também desafiou esta ordem. As autoras frequentemente começam por traçar o contexto social e político para depois mostrarem o papel desempenhado neste contexto por D. Carlota Joaquina. Embora o livro seja escrito por historiadoras profissionais e possua peso científico, i.e. referências a pesquisas recentes refletidas na sua vasta bibliografia, está perfeitamente ao alcance do público não especialista. Aliás, o objetivo parece ser precisamente este – explicar, a um público mais vasto, que a história é densa e raramente se deixa reduzir a heróis ou vilões.

Bibliografia

  • André Belo (2021): Morte e ficção do Rei D. Sebastião, Lisboa, Tinta da China.
  • Maria de Deus Beites Manso e Maria Fernanda Matias (2025): D. Carlota Joaquina. Entre o dever e a transgressão, Lisboa, Edições Parsifal.

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Em 2016 defendeu na Universidade de Varsóvia a tese de doutoramento dedicada a D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques (galardoada com Summa cum Laude). Desde 2011 trabalha na Universidade de Varsóvia dando aulas relacionadas com a cultura portuguesa. No ano letivo 2016/2017 trabalhou na Universidade Jaguelónica. Participou em conferências, congressos e cursos. Publicou vários artigos em português, polaco e espanhol dedicados à história e à literatura portuguesas tendo desenvolvido pesquisa, entre outros, sobre a produção literária do período da união ibérica e a "história lendária" numa aproximação comparatista. Foi bolseira do IC e do NCN.

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