Uma viagem a Goa

Em que acreditam os goanos contemporâneos?

O estado mais pequeno da Índia, localizado na costa do Mar Arábico, é um verdadeiro caldeirão de culturas. Tem uma história riquíssima: começando com os petróglifos pré-históricos, a que se seguiramo reinado de Açoca (séc. III a.C.), o Império Mauria e muitas outras mudanças e encontros culturais, entre elas a presença dos portugueses a partir do século XVI. Os anos 60 testemunham o começo da cultura hippie que, tal como os turistas contemporâneos, gostaram muito das praias pitorescas de Goa. Mas será que hoje em dia este caldeirão cultural estará a perder o seu calor e sabor, e a região a tornar-se num destino turístico insípido? Em que acreditam os goanos contemporâneos? Quais são as suas identidades, e, como consequência, as suas cosmogonias? Nesta entrevista vou falar com a Jolanta Kowalak, uma antiga aluna do nosso Instituto, que voltou há pouco de uma viagem a Goa, e esperançosamente iremos esclarecer um pouco estas dúvidas. A Jolanta concluiu o curso de licenciatura (2018) e de mestrado (2021) em Estudos Portugueses. Presentemente é professora de português, ocupa-se também do marketing numa escola de línguas e numa editora. Coordenadora da «Maré» – a primeira mostra de cinema dos países da língua portuguesa na Polónia, cuja primeira edição teve lugar a 26 de maio deste ano.

Jolanta, em fevereiro deste ano visitaste a Índia para ir a um casamento. Depois, porém, decidiste viajar até Goa. Porquê?

Bem, desde que eu fiquei sabendo que Goa era portuguesa eu tinha este sonho de ir lá. Marquei-a no meu Google Maps como um lugar para visitar —também Diu e Damão, que são regiões mais a norte de Goa, mas que não tive oportunidade de visitar durante esta viagem. Já que o meu amigo me tinha convidado para o seu casamento eu não podia perder essa oportunidade,­ estar na Índia e não ir a Goa seria um pouco… não sei se estúpido, mas seria uma perca de oportunidade, embora a região onde o meu amigo se casava fosse a duas horas e meia de avião de Goa. Então, era bastante longe.

E que região foi?

Uttar Pradesh. Bastante perto de Deli. Umas três horas de carro, o que na Índia não é muito. Da cidade onde mora o meu amigo, Mathura, é uma hora de carro até Agra onde fica uma das atrações turísticas indianas mais famosas, Taj Mahal.

Então, uma boa oportunidade, de facto.

Sim. O que é engraçado é que antes eu pensava que Goa era uma cidade e só depois descobri que era uma região.

Uma região pequena, contudo.

Sim. Acho que dá para percorrer a região em três horas de carro. Mas também não é tão pequena assim, porque em cinco dias —fiquei lá cinco dias —só consegui ver o norte de Goa, não consegui ir para o sul.

Certamente há muito para ver. Por alguns, Goa é considerada uma região muito turística. É assim na verdade? Visitaste alguns monumentos históricos ou outros lugares interessantes? Podias também dizer-nosdo que gostaste mais?

É difícil dizer se é uma região turística porque eu fui lá durante a COVID, já no final, e ainda havia quarentena obrigatória para os turistas. Então, não pude ver como é normalmente, imagino que haja muito mais turistas de fora, estrangeiros. Havia muitos turistas da Índia. Muitas pessoas tirando fotos, dava para ver que havia turistas, mas eram principalmente indianos. É um destino muito popular entre os indianos para organizar festas de casamento, de despedidade solteiro, etc. Até o meu amigo que se casou pensou em passar lá sua lua de mel. Fomos, por exemplo, para a cidade chamada Baga, que é uma das cidades mais turísticas no norte de Goa. Quando a gente chegou lá, já estava lotado, e o meu anfitrião do Couchsurfing me disse que estava quase vazio comparado com o que está normalmente.

Vista para o Mar Arábico

Goa é muito pitoresca, não é?

Sim, como fica na costa do Oceano Índico, há muitas praias bonitas como costa rochosa e flora típica para os países tropicais. E é uma região muito verde, embora eu estivesse lá durante a estação seca (no período das chuvas costuma estar ainda mais verde) e é um pouco diferente de outras regiões da Índia, um pouco mais “europeia”, digamos. A arquitetura portuguesa mistura-se com arquitetura indiana, tanto nos edifícios religiosos como nas casas. Não é uma região plana, há muitos morros, que fazem-na ainda mais pitoresca. Um dos lugares mais icônicos, onde muitas pessoas param para tirar fotos é Palm TreeRoad, uma rua muito estreita com palmeiras em ambos os lados.

Então, quais foram as diferenças mais visíveis para ti entre Goa e outros estados indianos?

Principalmente na arquitetura, dá para ver muitas diferenças e muita influência portuguesa. Há muitas igrejas mesmo brancas. Nem em Portugal vi igrejas tão brancas, tão limpas e tão bem conservadas. Descobri que eles limpam as igrejas todos os anos depois da estação das chuvas e fiquei chocada.

Outra diferença é a religião. O cristianismo não é tão visível noutras regiões da Índia, onde domina o hinduísmo e o islamismo. Obviamente, em Goa há também templos hinduístas, mas não dominam tanto como em Uttar Pradesh, por exemplo. As pessoas são um pouco diferentes na aparência, dá para ver o sangue português nos rostos. O que mais? Acho que a comida é muito melhor em Goa, talvez seja por causa de turistas, não sei, mas quando fui para Goa, foi no início da minha viagem pela Índia, estava preparada para problemas de estômago, porque é isso que as pessoas falam sobre a comida indiana, que os indianos têm outro tipo de flora intestinal e que é muito fácil acabar com intoxicação alimentar. Mas fiquei muito surpreendida com a qualidade da comida e a variedade de restaurantes, que eram muito, muito bons. Foi muito fácil achar um restaurante com comida grega, espanhola, etc.. Mas voltando às diferenças, no Sul da Índia se consome mais carne porque o Norte é mais marcado pelo hinduísmo, e os hinduístas são geralmente vegetarianos.

Uma das igrejas brancas de Goa

E quais são os pratos mais típicos da cozinha indiana?

A base para tudo é massala, que é uma mistura de temperos que eles adicionam até para uma fruta (na casa do meu amigo comi uma goiaba polvilhada com massala…). Eles gostam muito de leite, manteiga e açúcar. Todos os doces são baseados em leite e açúcar. E se você pedir um chá na Índia, sempre vai receber masala chai, que é um chá preto cozido com monte de especiarias (cardamomo, gengibre, anis, pimenta e cravo).

Já que falámos de comida, notaste algumas marcas da presença dos portugueses nesta região, por exemplo na cozinha goana?

Sim, com certeza. Além da arquitetura, que já mencionei, há também algumas palavras que vêm do português, começando com os nomes das pessoas. Por exemplo, eu fiquei na casa duma pessoa que tinha sobrenome “de Costa”. Foi curioso, porque ele não conhecia quase nada de português, só acho que conseguiu dizer tudo bem. Ele tinha uns 40 anos, então imagino que os avós dele tinham que falar português. Mas não sei, não falei com ele sobre isso. Uma palavra portuguesa que eu notei era pão, porque na verdade os portugueses trouxeram o pão para Índia. Acho que eles o pronunciam de um jeito diferente, não sei repetir… Mas acho que pao ou algo assim. Têm também outras palavras que são empréstimos de português, como por exemplo igreja ou arroz. Eu até descobri uma lista de empréstimos na língua local (concani), mas foi só quando voltei da Índia. Têm também nomes de cidades…

Ouvi falar do Vasco da Gama…

Sim, é uma cidade onde fica o aeroporto. Outros exemplos são Margao ou Saligao que imagino que antigamente levavam um til que com o tempo, desapareceu, como no caso do pão que ficou pao. Outra cidade a qual fui, Tiracol, também soa português.

Tiveste oportunidade, além do teu anfitrião que já mencionaste, de falar com os goanos?

Sim, falei com alguns.

E que língua usaste?

Inglês. Acho que não encontrei ninguém que falasse português. Eu às vezes mencionava que falava português, que vima Goa porque estudei língua portuguesa e fiquei interessada por isso, mas nunca ninguém admitiu que falava português. Imagino então que não seja tão frequente. Embora por exemplo, na capital da região, Panaji, onde havia muitas casas típicas portuguesas, casarões com azulejos, vi um mural com Percival de Noronha, que, como fiquei sabendo depois, foi uma espécie de enciclopédia ambulante da história portuguesa de Goa. Tinha muito conhecimento relacionado com o patrimônio  e a história de Goa. Morreu três anos atrás e esse streetart era uma homenagem a ele. Ele com certeza falava português.

Streetart dedicado a Percival de Noronha

Ele era português?

 Sim, acho que sim. Pelo nome parece que sim[1].

Mas antes também disseste que alguns habitantes de Goa têm nomes portugueses, não foi?

Com certeza ele tinha origem portuguesa, mas não sei se ele se considerava português ou indiano.

Viste alguns turistas portugueses?

Não, mas acho que é por causa da COVID. Também fiquei surpreendida que não havia uma conexão de avião direta de Portugal para Goa. Então acho que não é um destino muito comum para os portugueses.

Goa foi também associada ao movimento dos hippies nos anos 60 e seguintes. Viste algumas marcas da presença deste movimento ou já é passado?

Eu ouvi que há pessoas que vão lá para viver de um jeito típico para hippie… Por exemplo, antes da minha viagem, conheci online um polonês, que era um amigo da minha amiga, e descobri que ele foi para Goa para viver… Na verdade, acho que ele não foi com essa intenção, mas ficou lá porque não conseguiu sair por causa da COVID. E agora, nem quer sair, vive como um hippie. Mas acho que agora Goa é associada mais com a música tecno, há muitos festivais nas praias e muitos clubes, muita droga também… Eu pessoalmente não encontrei muitos hippies. Acho que agora esse movimento se transformou em nomadismo digital. Muitas pessoas alugam algum apartamento barato perto da praia e vivem lá por algum tempo e depois mudam-se para outro lugar.

Participaste nalgum festival?

Não, infelizmente por causa da COVID tudo estava fechado ou se já estava aberto, por causa das eleições fechava muito cedo. Parece que eles têm algo tipo de silêncio eleitoral que começa algumas semanas antes das eleições. Uma outra pessoa do Couchsurfing me levou para um clube, onde cada domingo havia uma festa tecno, mas também estava fechado. Era um sítio muito conhecido, se chama Top Hill, um lugar muito grande situado no morro (como indicia o nome) com estacionamento enorme que geralmente está cheio de carros .Consegui ir a outras festas (que, porém, por causa das eleições acabaram cerca das 23h), e eram lugares bem semelhante a clubes europeus, apenas a música era em alguns casos diferente – na maioria indiana e o DJ trocava músicas cada 30 segundos.

Portanto, muitos turistas da Índia, mas não só, também deoutras partes do mundo… Naturalmenteque quando estavas lá não havia muitas pessoas, mas, na tua opinião, achas que a antiga cultura e história dessa região estão a desaparecer, e Goa está a transformar-se num destino mais turístico?

É difícil dizer depois de passar apenas 5 dias lá mas segundo a minha experiência, parece que a língua portuguesa está desaparecendo, parece que ninguém a usa mais no dia a dia, só está usada inconscientemente, nos nomes das ruas, cidades etc.. Mas, por outro lado, eles cuidam bem do patrimônio material, a arquitetura portuguesa, as igrejas, casarões. Obviamente não todos estão em estado perfeito mas acho que com o desenvolvimento do turismo, vão investir mais dinheiro nisso como é no caso da cidade Panjim, para manter essa caraterística, e atrair ainda mais turistas.

Recomendarias uma visita a Goa aos nossos leitores?

Sim, com certeza. Até eu quero voltar porque, como já disse, visitei apenas o Norte do estado, não fui, por exemplo, à cidade chamada Velha Goa, onde há um conjunto de edifícios declarados Património Mundial pela UNESCO, como a Sé Catedral, a Basílica do Bom Jesus, etc. Então há muita coisa para ver e vale a pena, com certeza!

Acho que é tudo. Muito obrigada!

Obrigada.


[1] Percival Ivo Vital e Noronha (1923-2019) foi filho de António José de Noronha, de Loutulim, e de Aurora Vital, de S. Matias (ambas as vilas localizam-se em Goa; não é muito claro se os pais de Percival se tenham identificado como portugueses). Para mais informações recomendo a seguinte entrevista: https://www.oscardenoronha.com/2020/07/26/a-ultima-conversa-com-percival-noronha/#_edn1

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Aluna do segundo ano dos Estudos Portugueses na Universidade de Varsóvia

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